quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Perfume dos Anjos

Eram doces as mortes adiadas,
As flores em vasos adormecidas
Com o perfume dos anjos
A encantar festejos.

Lá atrás, no porão das minhas veias
Seguia a procissão com ave-marias
E moleques vendendo amendoins.
Tudo na rua de silêncio lento
Como uma pandorga alheia ao vento.

Eram doces as sortes adiadas,
Quando ao mar jogavam-se flores
E, perdidamente, esqueciam-se amores.
Jogos de bem-me-quer, mal-me-quer,
Em margaridas jogadas ao chão.
Compassadamente as rezas se sucediam
E o dia perdia a cor.
Pássaros acendiam a lua
E a noite enchia-se do mais sublime amor.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Ruelas de Sevilha

Prosseguir, pelo outro lado da rua,
Contra o vento que do final corre atento,
Ferindo a face, azeitando a alma. Aparecer por detrás dos versos empoeirados,
Surpreendendo arritmias, corações doídos,
E gritar para que tomem cuidado
Todos aqueles que não ousaram.

Há uma vetusta prece do lado de lá
Que faz lembrar uma noite sonâmbula.
Caminha indecisa sem vestes,
Prostrando-se aos pés do mistério.

As ruelas de Sevilha, labirintos.
Como é doce sentir o mistério,
Interrogado sempre, indeciso às vezes.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ode distraída

Embalam-me os teus braços como a fortuna das preces.
Ouço tuas raízes emergir com o vigor da esperança.
Curvo-me aos teus olhos incertos
E aborreço de toda ausência.

Assim como as cores vou sumindo no entardecer das sombras,
Peregrino atento do teu amor de extremada paixão.
Ereto, incansável, fugaz prurido de perfume esquecido.

Não me esqueça que me ponho a escutar
Sons que a natureza não desperta, odes de um poeta adormecido.
Não me recuses que me ponho a chorar
Recompondo a pintura deste quadro sonegado.

Seguir e seguir como a torrente de vento sobre a relva.
Fugir dos desgostos nos teus braços
E molestar as memórias de uma noite sonâmbula...
Assim prossegue a lida de um desafio sem ritmos.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) CAP. IV

Farto da rotina, Jaali começou a sair de noite, quando a madrugada esvaziava a cidade. Caminhava muito, acabando por conhecer toda a orla do Guaíba.
Tudo se sucedia com regularidade e assim foi por semanas. Só que, num certo dia, Jaali começou a ouvir um barulho estranho das pombas, logo após voltar de sua caminhada noturna. Ficou apreensivo. Em verdade, tinha medo daquela sala enigmática sem teto. Repetiu-se o barulho por mais duas vezes. O arrepio tomou conta de seu corpo. O que poderia ser aquilo? Dormir era impossível. Não suportando mais a curiosidade, dirigiu-se passo a passo para a peça fatídica. Nada encontrou a não ser as pombas inquietas. Sentou-se a um canto para observar melhor o que estava acontecendo. Absolutamente nada, nenhum som, nenhuma imagem, nenhuma luz. Fatigado, levantou-se a fim de voltar para a cama que improvisara. E foi nesse instante, algo que jamais esqueceu, que um raio de luz intenso penetrou pelo teto ausente. O buraco parecia encantado com a intensidade da energia que por ele perpassava. Tudo aquilo cegou Jaali. Apavorado e trêmulo quase não conseguia respirar. Algo, porém, começou a tomar forma. Uma cadeira imensa de ouro. Na verdade, uma espécie de trono e nele sentado um ser de beleza indescritível. Descia, descia, bem devagar. Que maluquice! Como pode acontecer alguma coisa dessa espécie?
Jaali encolhido no seu canto, mal podendo abrir os olhos. O ser encantado olhou para o infeliz mandando-o levantar-se. E começou a falar:
- Já algumas vezes estive aqui e, em algumas delas, também descobri homens fugitivos e amedrontados como tu. Não conheces nenhum porque vens de longe. Tornaram-se famosos e conquistaram várias coisas na vida. Toquei-lhes com as mãos de magia, transformando-os naquilo que seu desejo mais profundo almejava. Certamente, haverás de ter ambições se não por que fugirias para tentar uma vida nova? Diz-me: quais são tuas aspirações?
Jaali não podia falar. Tudo dentro dele paralisara. Sua postura era de um fantasma. Silenciou.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) cap. III

De manhã, acordou bem cedo. A chuva dera uma trégua, deixando que alguns raios de sol penetrassem no apartamento. Assustado, Jaali levantou-se mansamente, olhou pela janela e viu os fregueses remanescentes do cine Áurea, que levavam suas angústias de volta para casa. Olhos fundos e pretos de habitantes da orgia.
Em passos cuidadosos rumou para as outras peças. Muita sujeira. Abandono total do imóvel. O banheiro quase destruído. Estranha era uma peça que constituía um avanço do apartamento com um teto que se encontrava rompido. Um buraco bem grande no teto, que deixava entrar a claridade do dia. Certamente, há anos aquela moradia não era habitada, porque naquele lugar havia um bando de pombas, que penetravam pela abertura. Ali faziam seu viveiro.
Jaali permaneceu por horas no apartamento, mirando a rua de soslaio para não ser descoberto. Ouvia, às vezes, algumas vozes que vinham das outras moradias e também da “Casa São Sebastião”, que ficava ao lado do edifício, e que viera depois a conhecer.
Chegou a noite e aquele lugar voltou ao silêncio, rompido apenas pelas conversas dos frequentadores do Cine Áurea.
A fome e a sede insuportáveis exigiam uma providência. Teria de arriscar algo. Mas esperou a madrugada. No momento certo, escalou a abertura da peça e chegou ao telhado do prédio vizinho. Arredou algumas telhas e alcançou as tesouras de madeira que as sustentavam. Por um alçapão conseguiu acesso a um salão onde deparou com um mundo de imagens. A “Casa São Sebastião” estava repleta de imagens de santos e peças africanas. Jaali sentiu-se um pouco em casa, ainda que tão-só pela frieza das estatuetas. Não pode deixar de admirar um negro que fumava um cachimbo. Porém, a frustração foi inevitável porque nenhuma comida fora descoberta. Afinal de contas, estética não combina com estômago carente. Teria de continuar a busca.
Voltou para o telhado e seguiu adiante. Chegou à avenida Julio de Castilhos e jogou-se na calçada. Por pura sorte, acabou por penetrar no “Atacado do Beto”, que vende toda espécie de guloseimas, e que ficava no outro lado da rua. Fartou-se e fez um carregamento para seu refúgio.
Jaali em seu apartamento assombrado e fantasiado pelo cansaço começou a experimentar a saudade de seu país. Solidão sentida. E assim foi mais uma noite do pobre imigrante, já agora com a transferência da dor do estômago vazio para o coração machucado. Procurou amparo na imagem do negro com o cachimbo que trouxera da “Casa São Sebastião”. Companhia silente mas agradável, cor da sua pele, que fazia lembrar do avô que nunca mais vira.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) cap. II

Dois dias passados, Jaali decidiu abandonar o navio. Era demais o desconforto. Com pés de pluma seguiu até encontrar a saída. Madrugada, completo silêncio, o guarda sonhando com seus fantasmas, nada impedia a fuga. E assim foi.
Jaali caminhou pelo cais do porto, tentando abrir uma das tantas portas dos armazéns e, finalmente, conseguiu penetrar no armazém A-15. Sacos e sacos de cereais empilhados. Aconchegou-se num canto e ali ficou com a assombração dos ventos das tempestades de agosto. Chovia muito e o frio penetrava por debaixo das portas que davam para a avenida Mauá. De dia, subia na pilha de sacos e admirava o movimento dos carros e das pessoas que iam trabalhar nos edifícios próximos. A fome apertava e o frio desafiava uma reação. Teria que sair dali. Mas como? Para onde ir?
No terceiro dia não suportou mais. À noite, quando desperta a oportunidade para o que é furtivo, pulou por um buraco que havia no teto. Esgueirou-se e conseguiu atingir o chão pelo lado de fora, deixando para trás o armazém A-15. Atingiu o muro, escalando-o com facilidade. Estava na avenida Mauá. Ninguém. Um carro que passava de vez em quando. Pôs-se, então, a caminhar. Viu um prédio imenso que o surpreendeu. Em verdade, era o mercado, imponente no seu amarelo silencioso. Prosseguiu pela avenida Julio de Castilhos. Por sorte não encontrou viva alma. A cidade mais parecia um mundo sonâmbulo. Quando chegou à Rua Vigário José Inácio, dobrou à esquerda e viu a porta aberta do edifício “Carlos Daut”. Não titubeou e entrou às pressas. Dois elevadores à frente. Não sabia o que fazer. Subiu as escadas e, de repente, viu que a porta do apartamento 1035 estava apenas encostada. Entrou e enxergou pouca coisa porque a escuridão era completa. Deitou-se no chão e dormiu.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) capítulo I

Quando decidiu entrar naquele navio para abandonar sua vida infame, Jaali Hru Ra Hotep não poderia imaginar as agruras que viria a sofrer. Esgueirou-se por trás da casa de máquinas, invadindo o porão úmido e fétido. Ali, por certo, ninguém viria e permaneceria seguro até o destino. Mas que destino? Não tinha idéia do que poderia acontecer ao fim de uma viagem desconhecida. A esperança, porém, era chegar à América e ver todo o cenário deslumbrante das construções e daquele povo cheio de heróis.
E assim foi. Dias e dias no mar, espreitando como um rato o alimento que sobrava, comendo pão velho, carne estragada e bebendo água suja. Tudo isso levava a enjôos constantes, às vezes fervendo de febre, cólicas agudas.
Não entendia bem o que falavam, mas lembrava algo de um primo seu que fora preso em Moçambique e que ouvira uma língua estranha. Quando caçavam, seu primo repetia as palavras que ouvira. Algumas, agora no navio, escutava com atenção, embora sem saber o que significavam.
Sozinho na escuridão só conseguia lembrar-se de coisas tristes de sua infância, sempre na rua, sem os pais que haviam sido mortos pelos soldados revoltosos. Correndo atrás de comida, correndo dos outros meninos, correndo da polícia. Cresceu correndo, fugindo.
Certo dia, ao ouvir os homens chegando para o trabalho nas máquinas, percebeu que alguma circunstância havia mudado na viagem. O navio não balançava tanto. Será que o mar era calmo pelas redondezas? Jaali Hru ignorava totalmente que, em verdade, a embarcação penetrara na Lagoa dos Patos em direção a Porto Alegre. Pobre rapaz. No máximo as construções que veria seriam o estádio beira-rio, o centro administrativo e a receita federal. Errara de América. Acabara zarpando para a pobre.
Um silvo a penetrar no silêncio da noite, a lentidão do barco, a atracação. Conversas, gritos de ordem, desembarque. E assim foi pelo resto da noite.
Jaali Hru parado, com medo silencioso, aguardando pelos acontecimentos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Esses juízes...

No tribunal os juízes eram muito irreverentes. Lembro que o Haddad residia em Curitiba e, em todos os fins de semana, queria voltar para casa. Mas por que fazer isso, Haddad? Não vês que é muito cansativo? Ele, com sua voz grossa, respondia, esclarecendo o motivo: “saudade das crianças.” Pois não é que alguém logo inventou: “eu sei, saudade das crianças, especialmente da cabeludinha do meio.” Ele ria de mansinho como todo mineiro. Outros, chegavam à sessão de julgamentos e perguntavam logo ao presidente da mesma: “pauta grande hoje, presidente?” Coisas de magistrados. Realmente, a vida de juiz é bastante pitoresca. Lembro que em Fortaleza um advogado entrou com uma ação pedindo relação de emprego referentemente a um indivíduo que trabalhava, desde alguns anos, como mecânico em um quartel do exército. Ajuizou a ação contra o coronel fulano de tal, comandante da unidade militar. Despachei mandando emendar a inicial para direcionar corretamente a ação. O gajo voltou com outra inicial agora contra o Quartel do 9º Regimento. Indeferi, com o mesmo despacho. O advogado procurou o Ivo, meu diretor de secretaria, e pediu: “pelo amor de Deus, pergunta para o juiz quem é que eu devo colocar como réu nessa ação”. O Ivo respondeu: “doutor, todo advogado tem que zelar pela UNIÃO de sua classe”. Uma semana depois, o bacharel entendeu o recado e matou a charada.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O meu barbeiro Melo

Morreu a mulher do Melo, o meu barbeiro. Sua melancolia me contagiou. É difícil encarar olhos injetados de dor. Melo, um bom sujeito, colorado como eu, sofredor. Em cada quarenta minutos do corte de cabelo tentamos salvar o mundo. Mas ninguém ouve nossa filosofia. Nos despedimos e adiamos o conserto da vida para o próximo mês. Mal sabe o Melo que, ontem, saí da barbearia com a tela do dia borrada pela tristeza. Perdas são difíceis. Quem não sabe disso?
De tanta amargura o Melo me cortou mal o cabelo e fiquei igual a um cantador de música sertaneja. Logo eu que odeio música sertaneja.
Tem dias em que a gente se incomoda e tudo perde a definição. Problemas profissionais, posse dos bens, festejos e passatempos. Nada interessa. E tudo que vem à frente, fazendo ferver a saudade, ganha um grande relevo. Nesse tipo de avenida é que passeia Gabriel García Márquez, quando escreve, por exemplo:
“Señor, señor, devuélmeme mi antigua inocência
para gozar su amor outra vez desde el principio.”

Nesses momentos o bom mesmo é andar pela rua vendo as vitrines. Tudo o de que não se necessita a não ser para cuidar da atenção e desviá-la dos amores acabados. No inferno deve ser assim: caminhar com o coração sempre partido, pedindo perfume às flores e obtendo como resposta o olhar calado.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Prova de sucessões

Pois não é que o Gifone ganhou a megasena acumulada? Descontado o imposto de renda, 154 milhões. Mas foi discreto. Não saiu por aí a alardear sua riqueza. Obviamente, a vida mudou. Vestuário, aparência, viagens, novas amizades, a maioria do seu bolso. Investiu tudo, com um excelente consultor financeiro, o Felipe. Tudo corria às mil maravilhas. Conheceu mulheres lindas, mas jamais quis casar. Um dia, recebeu um conselho da mãe: por que não congela o seu sêmen para no futuro ter um filho? Afinal quem herdará toda essa fortuna? Aceitou o conselho e deixou o material em depósito seguro. Só que, após alguns anos, conheceu Kátia com a qual veio a ter um filho, Cássio. Corria rotineira a vida quando Kátia sofreu um acidente e veio a morrer. Gifone entrou em depressão. Definhava a cada dia. De nada adiantava a fortuna. Foi aí que Dalva, sagazmente, conseguiu acesso ao sêmen depositado por Gifone, corrompendo o guardião. Com o auxílio de amigos, logrou inocular em si mesma o sêmen e conseguiu uma gestação segura. Nasceu uma menina linda, com os olhos do pai, que se chamou Gilda. Mas tal fato nunca chegou ao conhecimento de Gifone ou de qualquer pessoa da família. Passaram-se alguns anos e Gifone morreu por definição da tristeza coisa que o coração não controla. Velório, lágrimas, desconsolo. E, em seguida, o inventário. Cássio, único herdeiro, postulou a abertura da sucessão. Mas qual não foi sua surpresa ao receber uma notícia ruim do advogado: Gilda alegava ser sucessora do falecido, pedindo a investigação da paternidade com o exame de DNA. Feito o exame, deu positivo. Gilda era filha de Gifone. Depois de muita discussão, ficou provado que o de-cujus não havia conhecido em vida Dalva, a mãe de Gilda. Tudo não passara de um embuste. Todavia, inegável que Gilda portava o sangue de Gifone. O juiz tinha que julgar se Gilda dividiria ou não a herança com Cássio. Em dúvida o magistrado pediu seu conselho. O que você respondeu?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Às vezes, é difícil conviver

Às vezes, é difícil conviver. A gente levanta mal dormido, com dor de cabeça, enjoado do fígado, com as costas reclamando. Como é possível reagir com satisfação ao amanhecer? Qualquer deslise é motivo para encrenca. O nível de resistência à frustração é pequeno. Então, as respostas são ásperas, azedas. Vai-se para o trabalho e se recebe a notícia ruim de que o projeto fracassou, de que o dinheiro faltou, de que o carro bateu, de que o filho foi mal na escola. Com todos esses pregos grudados a ferir os pés como andar pela rota da harmonia? Silêncio: é a única válvula de escape. Roer a amargura. Calar: Deus deu apenas uma boca para falar e dois ouvidos para escutar. Ouvir tão-somente, a melhor estratégia, nem que a infame da parceira intensifique sua tagarelice ao ponto de surgirem desejos de eliminação sumária. Como seria bom se nessas horas a gente pudesse fechar os olhos e, comandando as células do corpo, desaparecer. Sumir. Ir lá para a terra de onde veio o Superman entre as pedras frias sem qualquer ruído, sem contas para pagar, canos rompidos no banheiro ou cartões de crédito estourados. Aí você volta, calmo, tranquilo, com vontade de acariciar de novo. A esposa fica linda. Daí, liga a TV e assiste o último minuto da decisão do campeonato em que seu time perde. Sai correndo e gritando: espera, espera! Mas o avião para a terra do Superman já saiu faz quinze minutos.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Dinheiro traz felicidade?

Parece um esnobismo afirmar que dinheiro não traz felicidade. Certamente, é uma experiência que o mundo inteiro quer ter. O pior é que é assim mesmo. O sorriso pelo presente ou pela aquisição se apaga minutos, horas, dias depois. Raramente isso se transforma em meses ou alguns anos. A primeira dor do sentimento faz esquecer tudo. A perda de um ente querido, o abandono da pessoa amada, a desaprovação dos colegas, a crítica dos amigos. Enfim, toda a alma contém um poder que o dinheiro não controla. Paga-se por atenção, compra-se elogio. Jamais, porém, a fortuna conquista amor. E não adianta uma mansão, com carros sofisticados e roupas de grife, porque nada se aproveita sozinho. Nunca tive prazer maior do que ver o meu fuscão, quando pude comprar o primeiro carro, pagando sacrificadas prestações. E como eram felizes aqueles piqueniques à beira do rio Camaquã com as crianças e os casais amigos...
Quando se vê uma pessoa desleixada, roupas sujas, desbotadas, rasgadas. Pessoas gordas, descabeladas. Quando se vê esses estranhos que perambulam pela vida como caminhassem num bairro pobre de Baltimore onde as janelas estão fechadas e somente papéis são levados pelo vento no asfalto vazio. Quando se nota tudo isso nos cantos dos dias sem sol, percebe-se como a alma domina o corpo. Não há por que cuidar de si próprio ao ter pesadelos com tormentas, espaço abandonado no coração que já está quase murchando. Tristezas, muitas tristezas. Fico abalado ao ver pessoas assim. É como andar no ambiente da morte, na linha do limbo onde as paisagens deprimem. Lágrimas, lamentos, saudades dos dias em que existiram prazeres, sorrisos. Dias de festas que revolvem a lembrança como um filme cortado, imagens meio apagadas. No inferno não deve haver fogo queimando a pele. Acho que lá o diabo faz a gente lembrar do que foi lindo e não voltará mais. Lá, o demo obriga o condenado a olhar-se no espelho e ver a barriga protuberante, os seios caídos, o cabelo nas orelhas. Uma coceira intensa nas costas onde a gente não consegue alcançar. E segue coçando pela eternidade. O diabo acorda o pecador às seis horas para fazer ginástica. RRRRRRRRRRRRRRRR!!!!!!!!!!!!!!!!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Ainda nas prateleiras

Sigo nas prateleiras e encontro a “Antologia Poética de Neruda”. Lá pelas tantas descubro:

“Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos,
Con fúria, con olvido, paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia,
Y pátios donde hay ropas colgadas de un alambre:
Calzoncillos, toallas y camisas que lloran
Lentas lágrimas súcias.”


É impressionante como algumas pessoas podem usar as palavras por uma forma tão criativa. Do mesmo modo, a música. Acordes sublimes. O futebol: jogadas de mestre, que nunca alguém havia imaginado. Tintas e traços inimagináveis nas telas de Renoir ou Velásquez. Usam-se o idioma, os sons, as pernas, as linhas e tudo vira fantástico aos olhos do profano. É nesse momento que devo relembrar o que está em Irvin D. Yalom no livro “A Cura de Schopenhauer”:

“Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem.”

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Carências

Carências. A maior e mais importante delas é a carência de afeição. A vida sentimental é como uma caixa com compartimentos que se vai enchendo da substância de amor, desde a sala de parto. Quando algum compartimento experimenta a falta de carinho, permanece vazio. Aí, em outra fase da vida, reclama atenção. Em geral, na maturidade. Incríveis os jogos de que a pessoa é capaz para tentar preencher aquele vazio. Os extremos do alarido ou do silêncio, em regra revelam as carências. Procure, analise os motivos do comportamento desse sujeito e descobrirá que, em alguma fase de seu crescimento, apresenta um vazio de aprovação. Depois de morrer, gostaria que dissessem: “o Fábio? Aquele Fábio de Bagé? Um grande juiz, um grande professor, um grande advogado?” Isso é, sem dúvida, uma carência que carrego, porque de nada isso valerá quando me for. Pura bobagem. Não terei mais ouvidos. Digam o que disserem e isso não mais me dirá respeito. Minha memória é o que estiver no coração dos outros, se é que em algum deles penetrei. Nada mais. Afinal, quem não tem suas carências?

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O Guilherme, amigo bloguiano, é o "Gui-Gui". De fato, o "Gui-Gui", não é, Átila?
Grande figura. Ou melhor, bem pequena, em seu triciclo no Edifício City em Bagé. Atrás do prédio ficavam as garagens dos apartamentos com portões de cortina de metal. O picurrucho passeava em sua bicicletinha com o boné de aba erguida. Para lá e para cá. O dia todo.
Certa manhã, um sujeito moreno estava a consertar um dos portões de garagem. Erguia e baixava a cortina várias vezes. Barulho infernal. O Guilherme com os bracinhos no guidon olhando impassível. O moreno suado e nervoso. Lá pelas tantas, sai daquele rostinho a voz esganiçada: "Eu acho que tu não tá arrumando, eu acho que tu tá é estragando isso."
Sorte do "Gui-Gui" que, ao virar-se, a munição para fuzilamento estava apenas no olhar do obreito atormentado.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Famílias

Meu pai me dizia que era muito importante anotar as passagens interessantes nos livros. Sem medo de riscar. Adiante fui entender o sentido disso. Passeio pelas prateleiras e encontro os “Poemas” do Bertolt Brecht. Como podia o dramaturgo ser bom em poesia? Mas era. Não de um brilhantismo incontestável. Porém deixou algumas preciosidades. Hoje, quando se vive em meio à crise moral da nação são muito apropriados os versos:

“Famílias, quando lhes nascer um filho
Façam votos de que seja inteligente.
Eu, que pela minha inteligência
Arruinei a minha vida
Posso apenas desejar
Que meu filho se revele
Parvo e tacanho.
Assim terá uma vida tranquila
Como ministro do governo.”


Será que ele estava pensando no Brasil?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O louco do IPF

Na verdade, sempre acreditei pouco nos psiquiatras e nos analistas. A mente é uma caixa de armadilhas que o tempo vai aperfeiçoando. Joga constantemente. Cria atalhos, vias alternativas de fuga. Quando se pensa que está próximo de uma definição, o labirinto se complica ainda mais.
Como regra, fui um desastre em minhas observações. Previ muitas coisas em relação a determinadas pessoas. Errei quase na totalidade das vezes. Por exemplo: fui no casamento da Tania e achei que o Ilton não a faria feliz. Não sei como explicar, mas era um sentimento lá de dentro, aquela sensibilidade de asno. Cheguei a comentar minha apreensão com o Ivo e a Anita. Por sorte, minha burrice se confirmou. Ele não pode ser melhor marido e pai. Fantástico o Ilton. Daí que já não me problematizo muito ao prognosticar coisas ruins. Normalmente, acontecem ao contrário. Na realidade, se eu fosse psiquiatra ajudaria muito a povoar os manicômios. Talvez eu mesmo fosse uma aquisição na ala dos desnorteados.
No Instituto Psiquiátrico Forense, tinha um louco que era brigadiano, ou seja, um capitão da Brigada Militar que cometera um crime e fora parar naquele manicômio forense. Um dia, estava parado no pátio e um outro interno varria as folhas caídas no chão. Ao chegar nos pés do brigadiano, este fuzilou-o com o olhar, advertindo-o: “mais respeito, não vês que sou um policial militar?” O alienado varredor olhou de soslaio e respondeu de imediato: “aqui todo o mundo é louco” e seguiu varrendo os pés do capitão. Isso se repete muito na vida. Especialmente para aqueles que vivem pendurados nos cargos, deliciando-se com seu poder. O general Mourão Filho, que fez a Revolução de 64, quando se reformou ia ao quartel general e nem os soldados batiam continência para ele. Certa vez, vi um desembargador, que fora presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tentando entrar no prédio. Era velhinho, com dificuldade de locomoção. Teve de colocar seu celular, pasta e documentos em cima da mesa do guarda para penetrar no recinto. Quase aos tombos. Isso é o poder. Legião de puxa-sacos a que se sucede uma legião de desinteressados. Não tem mais o que dar, então não serve para nada.
Pois é...tudo é assim como um louco do IPF.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Respirar ar puro

Respirar ar puro conserva a vida. Porém, isso mais se aplica ao espírito. Respirar ar puro nesse nível é ler bons textos, ouvir música saudável, conversar amistosamente e conhecer pessoas agradáveis. Por falar nisso, dias atrás conheci uma pessoa muito camarada: o meu amigo Jader, de São Paulo. Porta aberta no olhar. Vias limpas no assunto. Trânsito fácil no argumento. Daqueles que é simples no trajar, no andar e no existir. Faz bem conhecer gente assim. Até renova a esperança.
O que eu faria se tivesse de desenhar a saudade? Lembraria, para iniciar, da minha filha amada. Traçaria um risco preto em diagonal no lado esquerdo da tela. Em seguida, à direita desse risco um outro vertical em vermelho. Por cima, tudo verde claro com um traço amarelo na horizontal. Embaixo, branco com seguimentos em matizes cinza claro e cada vez mais escuro, até fechar no lado direito. Preto da tristeza, vermelho da intensidade, verde com amarelo do sabor de vento e cinza da indefinição em estilo crescente da dúvida.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O drops no bolso

No interior do berço em que era posto para dormir, ao lado da cama onde ficavam meus pais, por entre as grades via a fresta da cortina vermelha de veludo do quarto de vestir. Durante três noites não consegui adormecer senão de manhãzinha. É que durante toda a madrugada vultos se sucediam por detrás das cortinas. Parecia que discutiam, brigavam. Agora que estou dentro da minha cabeça busco essas imagens, sem sucesso. Aqui há uma luz, mas com sua luminosidade fraca não me permite ver fantasmas. Seriam almas do outro mundo?
Alguns anos depois, passaram-me para o quarto do meu irmão, bem longe dos meus pais, isolado. Havia uma janela para um muro e contavam que, certa noite, uma estranha mão passou pela janela. Jamais podia fechar a janela, quando me deitava. Aquela mão poderia aparecer e não saberia para onde fugir, especialmente admitir o medo diante desse mistério. Sempre a vergonha do medo, como se esse fosse o verdadeiro fantasma.
A Sandra era a prima favorita. Adorava a Sandra. Sua presença me induzia o sonho. Era o símbolo da atenção. A prova de que eu existia e alguém se importava comigo. Doce Sandra, moreninha esperta com a ternura dos anjos. Ela foi chamada para descobrir meu esconderijo, quando minha mãe me obrigou a me esconder para evitar as injeções róseas que quase atravessavam meu pequeno braço e visavam a abrir meu apetite.
Quantas sensações de infância! Meu avô a me ensinar poesia: “Ó tu que vens de longe; ó tu que vens cansada.” Foi ele que estruturou meu coração, ensinou-me a grandeza da simplicidade.
Meus amigos: o Formiga, o Xuxa, o Flávio, o Boris, o Delvair, o Alemão. Uma luz radiante iluminava minhas expectativas naquele tempo. O jogo de bolinha de gude, o pião. O brinquedo de deserta, paralisa. As caçadas de passarinho ao redor da cidade. Em geral rebentava a borracha do bodoque. O jogo de bola na calçada. O Barbará era comissário de polícia e vinha de carro de praça para tirar a bola com a qual jogávamos na calçada da rua Ismael Soares. Ficávamos atordoados e quase sempre ele conseguia pegar a bola e rasgava. Raramente, o Flávio fugia com ela para dentro de sua casa, que quase era invadida pelo policial diante do grave delito que praticávamos. Por sorte, a avó do Flávio era braba e corria com o Barbará.
O time de futebol de salão, a coleta de dinheiro na rua Sete para o fardamento. A sede na casa do Xuxa. Regras rígidas, à moda talibã. Não podia dizer nome feio no interior da sede senão era multado. Um dia, o Boris disse “merda” e lhe foi imposta a multa de cinco cruzeiros, que revertia para o caixa do time. O judeu indignou-se, enfureceu-se, ameaçou demitir-se caso não fosse perdoada a dívida. Ansiosos por comprar uma bola nova não perdoamos o Boris.
Na praça de desportos jogávamos até anoitecer. Quando não tinha bola de borracha era de pano mesmo.
Aos domingos havia cinema no Glória. Cada um levava revistinhas do Fantasma, do Capitão Marvel, do Tarzan, do Opalong Cassidy. Vendiam-se ou trocavam-se por outras. A sessão era dupla, sempre com um filme de mocinho. A cada corte uma vaia e assobios da platéia.
Lembro da ocasião em que foi lançado o produto “Sonrisal” em Bagé. Davam uma amostra para cada um dos espectadores que entrava no Glória. Em seguida, viam-se as bocas espumando, os guris apavorados com aquela coisa ardida na língua. Ninguém imaginava que era necessário diluir na água.
Aos sábados, anos depois, íamos para a boate do Clube Comercial. Mágico ambiente em que o sorriso das gurias, sempre acompanhadas pelas mães, despertava um calor que vinha muito de dentro, de um extremo irreconhecível. Como dançar sem uma ereção? O terror de evitá-la. Colocar drops no bolso, encolher-se, curvar-se. Maldita calça apertada.
Bagé, minha saudosa Bagé, onde tudo prosseguia e a lugar nenhum se ia, no ritmo de Jorge Luis Borges em seu “Livro de Areia”: Nunca estiveram em Lobos? Dá no mesmo; não há um só lugarejo na província que não seja idêntico aos outros, até no acreditar-se diferente.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A terrível síndrome de limpa trilho

Há situações muito estranhas. Estava no Forte de Copacabana com a Iolanda e sentamos numa mesa da filial da Confeitaria Colombo. Pedimos dois sorvetes embora ainda estivesse farto do almoço. Vieram duas montanhas: chantili, nata, marschmellow, frutas e sorvete (ah, e a bolacha). Comi naquele silêncio de quem aproveita um canto do paraíso. Cheguei ao fim na exaustão de um queniano que se aproxima da linha de chegada de uma maratona de quarenta quilômetros. Aí a Iolanda se virou para mim: “não quero mais o meu.” Sobrara parte da montanha. Lá fui eu para completar a maratona dela. Tracei. Pagamos e saímos. Sensação estranhíssima. Senti nitidamente que eu era dois: a minha pessoa e na frente a minha barriga, caminhando independente, com vida própria, parecendo um balão. Pernas bambas: “ei, barriga, espera aí, mais devagar.”
Quando casei em 1968 tive logo três filhos. Para ganhar dinheiro trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Economizava nos detalhes. Ia em três supermercados para ver os preços mais baratos e comprava os produtos considerando isso. Pesquisa de falido. Por tal modo, grande era minha ânsia ao ver as crianças pedir comida e deixar no prato. Aquele filé à milanesa em Montevidéu com salada de batatas. Metade no prato dos guris. Não é possível. Comia tudo. O doce em Gramado. Lá ia eu. Por sorte, era magro e não havia o que me engordasse. Ocorre, porém, que adquiri a síndrome do “limpa trilho”. Até hoje, então, vou com a Iolanda nos restaurantes e me atormenta deixar os restos. Às vezes, me policio. Ela abandona aquele “coq au vin” e evito olhares para seu prato. Rabo de olho para o “coq”. Angústia. Fantasmas da época da falência. E me aproximo para comer só um pedacinho, que se transforma em dois, em... Duro. Muito duro. Só não é mais pela moleza que ficou minha barriga. Sabem, aquela que anda na frente, de vez em quando.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Corrida da Loucura

Um dia, talvez, alguém leia este manuscrito e conclua: “Pobre do Fábio, era bastante descompensado. Frangalhos de espírito expostos no frio, buscando uma harmonia e só encontrando os sons com a uniformidade da bandinha do Colégio São Pedro de Bagé”.
Precisaria ir ao fundo da memória para recordar:

"Barganhar com a lâmina que trespassa a vida. Se não der certo, arremeter numa pista estreita e limitada. Mas nunca deixar de fazer alguma coisa, quando vai se estreitando a esperança.
Algum dia de outono gostaria de receber os aplausos, ao baixar o pano. E ser uma estrela no firmamento do palco, amada e reconhecida. Todos os pedaços de mim haveriam de sorrir e achar sentido em qualquer graça. Reconheceria de longe o amigo a ovacionar admirado, escutaria os sussurros de aprovação, o menear positivo das cabeças, as palmas, os assobios. Tudo, tudo isso pelos versos declamados e os gestos de renúncia. Ser tudo por não ser nada, por saber que pouco vale ser tudo se não há transparência na palavra dirigida, se é opaca a visão e frágil o tato."

É muito bom escrever como se a cabeça estivesse a delirar. O mais útil está por detrás da lógica, raciocínio em tresvario como uma marcha-ré no estilo. Assumir a direção e desviar, correr, enfrentar as curvas das sensações, gozar com o perigo das dúvidas. Corrida da loucura.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O lado real

O lado real. Na verdade, não sei bem qual é. É real o que se passa por dentro ou que se vê, sente, ou pensa que existe lá fora? Um quarto escuro. Breu completo. O mundo não pára. Gira numa velocidade intensa nas conjeturas instantâneas. Lembranças de família, brigas de colégio, filmes inesquecíveis, esportes, saudades dos amores, contas bancárias deficitárias, débitos a vencer, clientes a atender, trabalhos a concluir, promessas descumpridas, carinhos sonegados ou esquecidos. Não, nada pára. A única realidade que não resiste a dúvida é essa: meu interior. Ele existe, muitas vezes em curtos-circuitos neuróticos, estressado, e, sem mais nem menos, acorda em paz, com a alegria dos colegiais ao passar no vestibular. Pena que nele não haja espaço para construir jardins e regar flores, o que não impede de vê-las seguidamente e absorver seu perfume. Quando há umidade no interior das pessoas vazam lágrimas pelos olhos para equilibrar o ambiente.
O medo. O medo de ter medo e conservar essa mácula no espírito pelo resto da vida. É mais gratificante arriscar a vida, seguramente perdê-la do que andar pelo resto dos tempos com essa dor na memória. O medo de ter medo leva ao sacrifício, ao heroísmo. Quando perguntarem o que fizeste nos tempos da ditadura e não tiveres nada para responder o que acenderá no interior do teu sentimento de honra? O peso de meu corpo que carrego na missão de me tornar digno não tem significado. Desfigura-se no confronto com o altruísmo. Nesse contexto sua perda é a conquista da liberdade. O homem desonrado não passa de um animal qualquer, sobrevive como ele, vegetando, mas ainda menos nobre porque teve opção e omitiu-se. Como será estar à frente de um fuzil e resistir? Como será a sensação de receber uma bala na testa e tombar? Fim ou recomeço?
Tem dias em que há uma indolência no coração. Acho que é minha artéria direita entupida. As pessoas perguntam: o que há contigo, por que esse silêncio? Inventa-se uma desculpa: resfriado, noite mal dormida, etc. Mas a verdade é que o sangue deve caminhar triste pelas veias, já sem os cuidados de quem tem alguma surpresa para vivenciar. Indolente, descuidado com as margens, alheio ao sol ou à neve. Desabando pelas pedras como o sonâmbulo que desce a ladeira, desatento ao despertador que insiste em repetir o alerta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Às vezes, lá no sítio, acordo e olho pelas janelas da sala para aquela névoa que toma conta do vale. Torna sombrio o humor, escurece a lembrança. Há dias na vida em que tudo é assim. Cerração a tapar a visão para as teorias válidas, para as crenças no que há de simples, para a perspectiva de amor. Tardes inteiras sem um contato de aprovação. Telefone mudo. Caixa de entrada do e-mail vazia. Campainha inerte. Falta luz na esperança. Um vazio visto de dentro do vazio. Alguém que assiste o movimento de cima do obelisco, nada chegando a ele e ele não chegando a ninguém. Difícil é harmonizar essa sensação entre a palavra que digo e o sentimento que não consigo atingir. Descobertas sofridas.
Sabem, é custoso escrever para não ser lido. Inutilidade. Tempo perdido. Espantosa a necessidade que temos de aprovação. Tenho que demonstrar algum valor a outra pessoa, seja ela quem for. Escrever somente para o interior do meu corpo envelhecido não parece constituir uma postura lógica. O pior é que é, muito lógica. Dizer-me, informar-me, discutir com meus fantasmas. Seguramente, devo domesticá-los. Não é possível que fiquem a mirar brumas pelas janelas no sítio para atormentar-se e atormentar os outros. Recostar-se numa pedra no interior da caverna e falar com as paredes. Aprender com a resposta do eco. Pena é que o eco não venha dias depois, porque se concluiria que várias frases proferidas foram infelizes e, se pudéssemos, não teríamos pronunciado as mesmas.
Engraçado, não tenho medo de olhar para o horizonte sem achar uma razão para viver. Sempre é tempo de costurar roupas velhas. Dizer para as pessoas que a gente lhes quer bem, abraçá-las. Perguntar pelo amigo que sofreu uma cirurgia. Chorar pelo que se foi. Dizer que se sente muito, quando realmente sofrimento existiu e não se está a mistificar. O padre Carlini, que era uma jóia rara, dizia que amor é preocupação. Ele era um testemunho disso. Ouvidos feitos para ouvir com a condução da alma pura.
Sempre fui um sentimental e, em inúmeras ocasiões, invejei os insensíveis, aqueles que comem, dormem, transam e consomem. Parece que não podem ser consumidos. Imunes à tristeza. Carregam os filhos pela vida como se carregam malas. Assistem a um filme inteligente e saem do cinema sem entender nada. E o pior: sem ficar incomodados com isso. Seres simplesmente jogados no espaço em seus lugares indefinidos. Não choram, não contam piadas, riem pouco, comem muito, especialmente carne gorda. Jamais, porém, tem os olhos marejados pela brisa melancólica da tarde. Passar pela vida como um boi, um cavalo. Trabalhar, pastar, cagar. Não seria melhor do que essa resistente sensação de perspectiva indefinida? Ao cair a noite, ter de escrever versos...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Estética

Estética é algo para quem não tem fome nem frio, não foi abadonado pelo cônjuge ou não perdeu o ente querido. Estética é experimentar por dentro da sensação como quem quebra um paradigma. Não ter compromisso com qualquer propósito. Sair para a chuva sem guarda-chuva nem capa. Esquecer do almoço. Ignorar o saldo bancário. Seguir com um único combustível: o vácuo da dor, que não faz chorar nem rir. Simplesmente permanecer num ignoto ambiente de ar rarefeito só que com todo o ardor do coração. E produzir assim, afoitamente, como Álvaro de Campos que andou nesse território numa amplitude que ninguém jamais conheceu: “E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...” Bem, o certo é que em Alberto Caeiro a coisa vai melhor:

"Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos."

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O lixo das gavetas

Nada como o word. A desgraça dos leitores, a graça da cultura inútil.
No Judiciário é o tormento dos juízes. A gente pegava aquelas petições de cinquenta páginas, espremia e lia o fato e o pedido. Em dois minutos.
Andei limpando a minha mesa. Um monte de coisas fora. Mas encontrei um texto, provavelmente de um dia nublado e frio. Olha o que dizia:
"Hoje me sinto como aqueles sonâmbulos, que perderam o segredo do coração e não acham o rumo das coisas. Andar pelas sombras, tateando com os dedos da alma febril. Tudo por uma tarde cinzenta, fria, em que os gritos da calçada anunciam barbantes, CDs piratas, bolsas ou cigarros.
O tempo de terminar a vida vem com angústia, inutilidade. Não se é mais passageiro de nada. O mendigo da Estação Rodoviária que só admira chegadas e partidas. Deve ser assim no limbo. Sem pressa."
Há almas que devem ter um pacto com tardes de chuva. Úmidas toalhas esquecidas no varal. Alguma coisa que já foi, que já se exauriu. Saudade de um tempo de festas.
Caminhar por uma estrada de terra entre plátanos. Avenida de saudade. Depois, sentar num banco de madeira e ficar olhando o horizonte de dentro do pensamento. E pensar, pensar, pensar com alguma tristeza de solidão. Se alguém abrisse a minha cabeça veria ruas vazias, um vento despretensioso e um relógio, ao longe, batendo dezoito horas. Tempo de divagar é como despedir-se das situações comuns. Um trânsito congestionado de sensações e uma espera infinita.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Por falar em doçura...

É engraçado. Há sentimentos que não se podem definir bem. Certos livros que se leem e, ao chegar ao final, dá uma nostalgia. Uma coisa meio doída no lado esquerdo do peito como diria o Milton Nascimento. Mundo que se conheceu e se penetrou com a alma comprometida, tornando-se um dos personagens. E, aí, tudo acaba. E agora como é que eu fico? Perdi a minha casa que era lá dentro do livro, perdi os meus conhecidos, não sei o que mais pode ter acontecido com eles. Portas que se fecharam sem a permissão do meu sentimento.
Há pessoas abrutalhadas, que aparentemente não têm sentimentos. Algumas profissões até estimulam tais personalidades. Na verdade, não sei se são essas profissões que fazem tais espécimes ou se são elas que tendem a procurar determinadas ocupações. Não sabem o que é caridade, ternura, carinho, atenção. Jamais darão uma flor de presente à mulher amada. Em geral, não sabem dizer “obrigado” para nada. Mas, por outro lado, existem aqueles que sabem abraçar, que conhecem o momento de elogiar com sensibilidade, que tornam a vida dos outros mais agradável. O meu Pedro é assim. Quando abraça as pessoas o faz com espontaneidade e o seu beijo estalado contem divindade. O vô adora ele, enchendo-o de amor com um simples olhar. A vó Tere, então, entregou a alma ao piá que faz dela o que quer. Um anjo pode ser travesso porque de suas artes só saem bênçãos.
Eisntein teria dito que “o acaso é Deus que passeia incógnito”. Li no livro do Saulo Ramos. Hoje, a Iolanda me contou que sentou numa lanchonete para comer algo e uma senhora puxou conversa com ela. Foi um longo e gostoso papo. No fim, ela abraçou Iolanda e disse-lhe que estava feliz por ter tido a oportunidade de conhecer alguém tão terna e disponível. As duas saíram felizes. Cada uma para seu canto do mundo. Naquele momento, por certo, andava Ele por ali, incógnito.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Matou tem que comer

Perder-se nos bairros árabes. Sempre adorei sentir-me perdido, sem ter idéia para onde ir. Naquele momento tudo é interrogação, ansiedade, prazer de mistério. Já era assim quando ia pelos matos nos braços do rio Camaquã, pulando barrancos, me enredando nos espinhos, caindo nas pedras, com as botas no arroio e a água fresca no rosto. O berro do Jacu assustado. Coração explodindo. Passo a passo, barulho de folha seca pisada, respiração curta, a arma engatilhada. Enfim, a descoberta: lá está ele, imponente, na árvore alta. Lentamente a mira é feita e o tiro disparado. Cai a ave e, como sempre, num lugar quase inacessível. Como matar e não levar? Como matar e não comer? Isso era crime na consciência. Assim acontecia no meu tempo: matou tem que comer (lei das bichas). A verdade é que a Birucha se encarregava de elaborar os pratos. Uma vez, matei uma saracura e fiz assada no espeto: horrível, intragável. Nem os cachorros aceitaram. Mas caçador que se prezava tinha que se alimentar da caça ou era criminoso nas regras da Casa Branca. O regulamento, porém, não se aplicava às caturritas que exterminavam o milho e as peras. Essas se podia matar à vontade. Depois, eram entregues aos porcos, degenerados animais, que pegavam as aves feridas na asa, ainda vivas, e engoliam-nas devagar. O bicho gritando e entrando na goela do suíno como num túnel do tempo, o som diminuindo, diminuindo, diminuindo. O trágico fim de uma caturrita. Daria uma boa cena de filme...de terror. Buscar o jacu abatido no meio do banhado, à beira do mato. Por que o desgraçado tinha que cair ali? Voltas e voltas. As botas enterradas no barro. Opa, cuidado se não me enterro todo. A caça ali no chão. Tenho que pegá-la. Como, depois, vou me gabar ao Telminho? Indubitavelmente, tenho que pegá-la. Questão de honra. Uma estaca estendida, uma pedra atirada. E, por fim, preto de barro na roupa apanho o bicho. Como me lembrava disso nas discussões de plenário do meu tribunal, quando debatia com algumas aves togadas! Meus argumentos de bons teriam se tornado ótimos com uma doze empunhada. Eliminados alguns jacus a justiça teria sido bem melhor para o povo. Só que teria de comê-los...argh!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Coisas de Bagé

Juca foi um dos bons amigos que tive. Conversávamos bastante, quando me dava carona até em casa, vindo da FunBA. Lamentávamo-nos: temos que sair de Bagé. O potreiro é pequeno demais. Escrevia crônicas como ninguém num estilo divertido. É pena que o Juca não publique livros. Mas ainda há esperança. Um dia, ele escreveu um artigo no Correio do Sul de Bagé, dizendo que no “paredon” (contenção feita num arroio para evitar enchentes com o escoamento nas enxurradas) eram fuziladas pessoas na época da 2ª Guerra. Inimigos do nazismo eram fuzilados no local. Bem o estilo daquele espírito maroto que trabalhava com o insólito e o pitoresco. O Alan, que era agente da polícia federal e que lia muito, foi chamado pelo diretor da PF em Bagé: “Alan, investiga o Juca, vê o que descobre sobre as tais de execuções no paredon”. O Alan engoliu em seco: “Doutor, isso é ficção, literatura, não me exponha a esse ridículo”. O chefe insistiu. Poderia ser cobrado pelas autoridades de Brasilia. Tudo haveria de constituir um perigo à segurança nacional (era época da Redentora). Lá foi o Alan e imaginem com que constrangimento entrou no escritório do Juca... Outra vez, Juca escreveu um artigo dizendo que os vikings estiveram em Bagé na antiguidade. A prova estava no concreto que havia na passagem do arroio que vai do Prado em direção ao cemitério. Em resposta, um respeitado idoso fez publicar um desmentido, afirmando que aquilo era obra de um prefeito há algumas décadas.
O major Jardim era outra figura fantástica, que gerou filhos da mesma têmpera. Um deles é o Jerônimo, compositor dos mais renomados. O major Jardim adorava uma guriazinha de vila, sempre transitando com sua lurdinha (metralhadora) por baixo do casaco. Foi denunciado por sedução. E o Mathias Nagesltein, um dos melhores contadores de “causos”, aconselhou ao cliente: “Na sua idade, vamos alegar crime impossível, em razão de impotência”. O major se exaltou: “Nunca! Prefiro a pior marmorra”. Certo o major na esteira da filosofia do Roberto Freire: sem tesão não há solução.
Lembranças. Metade da vida a gente faz os fatos. Na outra metade, a gente lembra deles. Depois dos sessenta vai-se descendo uma ladeira. Já não precisa tanto esforço. É mais fácil perdoar, tolerar. Meu avô Ervandil dizia que jamais admitiria voltar aos seus sete anos. Tinha toda razão. Já imaginou voltar ao colégio das freiras, ver televisão com aquele riscos em que a imagem era algo concreto e o resto pura imaginação? Quando o homem desceu na lua, lá em Bagé na casa da vovó Nita vi uns fantasmas se mexendo na imagem. Se aquilo era povo na lua só por exclusiva fé na TV Difusora. Mas a verdade é que tudo parece umedecido pela sensibilidade do coração, que verte lágrimas ao recordar a infância, a infância dos filhos, as conquistas afetivas, as glórias profissionais, o triunfo intelectual. Tudo num longínquo tempo das calçadas da rua Bento Gonçalves, vendo a minha amada Mara vindo do colégio com as amigas. Por que não posso lembrar da Mara sem vontade de chorar? De onde vem tanta tristeza?
Este papel é o meu analista. Vou a fundo ao borrá-lo com a tinta da impressora. Registro a dor, a esperança, a gratidão, a mágoa, a saudade. Registro tudo. Sim, minha filha, minha poesia é triste. Cresci vendo a vida pelo ângulo inclinado, com uma nesga de sol pela porta que não se abria completamente. Sempre faltando alguma coisa. Como um avião na aterrissagem normal, nunca chego ao fim da pista. Permaneço a olhar para ver o que existe do lado de lá. Não vejo e não sinto nada. Algum detalhe inviável do meu eu que não se entrega, que não quer se enxergar. Faltam poucos metros para o fim da pista e tudo é um mistério nesse espaço curto da espera.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dentro do estômago

Galerias incomensuráveis nas paredes do estômago. Tudo arquivado. Todas as angústias, os risos, as conquistas, as percepções estão lá, bem catalogadas. Enfim, nada do que fora engolido havia se perdido. Então, atrevo-me a folhear um dos arquivos para saber o que foi registrado.
Pastas das angústias tragadas. Lá estão o meu vestibular na URGS, a culpa por tudo que falhei nos meus relacionamentos, o concurso para juiz federal, a aposentadoria, as separações, a perda das pessoas amadas: filha, pai, avô, o Ivo. É uma sala escura, quase impenetrável. Quando se chega lá, lágrimas saltam dos olhos. Ouvem-se sons do que restou sumido. Sente-se ausência, respira-se omissão. É como um céu nublado no campo, com um silêncio misterioso, à tardinha.
Do lado dessa galeria estão as tristezas. Minha filha diz que os versos que aprecio são tristes. Acostumei-me a ler poesia com os olhos dessa galeria. Alguma coisa vaga pela noite, mas não se trata de fantasmas. Só uma saudade desacostumada. Fantasmas assustam; só a saudade entristece. A noite contém o vazio, mas um vazio que me torna ansioso e que por isso mesmo não é vazio, mas aviso de que alguma coisa vai mal lá por dentro da galeria do desconsolo. Sempre deixei uma fresta nas janelas desse lado. É preciso arejar as agruras. Se não, se passa a consumir a vida em queixumes insistentes e desanimadores. Desse tipo são os homens pobres de espírito a respeito de quem dizia Mefistófeles:

“Não, senhor. Quanto eu lá vejo
passa até de ruim. Chega a haver dias
que eu próprio tenho lástima dos homens,
coitados! Nem me animo a atormentá-los.”

A história tem seus personagens trágicos, que não merecem ser atormentados. Um deles foi Mussolini. A respeito dele comentou Umberto Eco em seu livro “Cinco Escritos Morais”: "Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído."

No outro extremo do estômago estão registrados os prazeres mundanos. Festas embaladas por sonoras risadas extraídas de uma cerveja bem gelada. Mulheres, parte nobre da costela de Adão. Filosofias, teorias salvadoras, idéias com brilho, discursos emblemáticos. O tecido, nessa parte, tem um colorido intenso, multifacetado. Sonhos, contos fantasiosos, declarações de amor, sexo enlouquecido. E muito cigarro...sim, muito cigarro. Prazeres inegáveis, por muitos proibido, como se a cabeça não fosse para criar besteiras, o aparelho digestivo para engolir impurezas e os órgãos genitais para criar o êxtase. Quem disso não morreu um pouco, custou a morrer, mas sem paixão.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Travessia do inferno

Um grupo de pessoas está à beira do rio Estige, aguardando a barca de Caronte.

Um sujeito olha para o relógio e diz:
- Porra, como tá atrasado esse cara!

Um outro diz para o do lado, apontando para o reclamante:
- Só pode ser paulista.

Alguém se queixa:
- Tanto bem fiz na vida. Por que esse é o meu destino? Como é injusta a lei divina!

O interlocutor atalha:
- Mas não era você que mantinha uma loteria fraudulenta?
- Sim, mas isso perto do que os políticos roubam é pouca coisa. Deveria ser aplicado o princípio da insignificância para que eu ficasse um tempinho no purgatório. Não mais do que isso.
- Ora bolas, você acha que Deus está para brincadeira?
- E você que está aí a deitar moral, afinal o que fez para merecer o inferno?
- Matei minha mulher que estava me traindo com o vizinho e, depois, me suicidei.
- Puxa, viu só? Isso é motivo para ser condenado ao suplício eterno? Matar mulher que trai?
- É que pretendo encontrá-la de novo lá no inferno e reatar as relações.
- Não é possível. Você merece mesmo o inferno, cabra da peste. E isso se os chifres permitirem que entre pela porta da frente.
- Guampudo como sou até vão me confundir com o demo.

Nisso aponta entre a névoa a barca de Caronte, um sujeito feio, mal vestido e neurastênico.

-Façam fila, seus idiotas. E não se esqueçam de pagar a viagem, incluído o imposto de conservação do navio e o pedágio que o governo obriga para a limpeza da água.

O paulista enfurecido:
- Animal, você se atrasa e ainda chega gritando. Não conhece o código de defesa do consumidor? E digo mais: não pago imposto nenhum, afinal de contas já estou no inferno mesmo. E aqui a água tem que ser suja desse jeito.
- Ah é, responde Caronte. Vais ver o suplício que te espera. Irás ferver no fogo da galeria dezenove.
- Pelo mesmo tempo que pagam precatório do IPE do Rio Grande do Sul?
- Sim.
- Ok, então retiro o que disse. Pago tudo.

As pessoas vão se acomodando na barca num banco apertado. A lotação está completa.

- Isso aqui parece sala de emergência de hospital do SUS, diz o paulista. Tá certo que os capetas de lá são mais cruéis.
- E falta verba para a limpeza, complementa outro.
- E a comida, então? Um enfermeiro me contou: “Aqui, preparamos os doentes para a morte.” Para a recompensa do céu? Indaga o enfermo. “Não, para esquentar o bolso do Caronte.”
- O paulista percebe a deixa e pergunta: “Senhor Caronte, não aceitaria um depósito nas Ilhas Cayman para me colocar nos seus aposentos?” O servidor do inferno dá uma chicotada no paulista e afirma: “Cá no escuro tem que ser honesto.” Mas se vira e diz no ouvido do paulista: “Quanto?”

Nisso, o Diabo lá no seu trono, vendo tudo, comenta: “Esse Caronte...”

terça-feira, 28 de julho de 2009

Prestação de contas

Ao chegar-se no inferno há filas imensas aguardando na aduana. Um passeio demonstra as fontes das criaturas que mereceram esse destino. Um grupo de políticos comenta o desfecho das CPIs, a discussão sobre as emendas ao orçamento. Outros, vestidos a caráter, lembram das Ferraris e dos cruzeiros nos seus iates abastecidos pelos empregados mal remunerados. Alguns, em vaidade comentada, apontam as glórias nos palcos, as honrarias, os oscares recebidos em festas sodomizadas. Os presidentes, embaixadores, ministros, magistrados dos tribunais superiores, chefes de autarquias, altos assessores e cantores de fama recordam das mordomias, dos bons tempos em que os favores emergiam de uma terra recheada de espíritos primários, amorfos, dependentes, sugadores. E assim segue essa turba de vampiros, com o sangue de um povo ingênuo, aguardando que se abra a porta das terras do demo.
No outro extremo está o paraíso. E ali a fila também se estende por uma avenida de flores. Alguns lembram que sempre quiseram dormir com os anjos, beijar a brisa, ouvir o canto dos pássaros. Jamais foram escravos da riqueza e souberam dividi-la com aqueles que mereciam um impulso na vida. As primas da Ladi estarão lá. Com vestes brancas em que não se enxerga o mínimo sinal de escuridão. Na verdade, não são as vestes mas a alma que envolve a neblina do sublime que resplandece ao vento. Professores humildes, autores simples, poetas desinteressados, jogadores que passavam a bola ao invés de fazer o golo. Quem abriu a janela do carro e mandou o transeunte passar. Quem parou para socorrer, foi assaltado e, dias após, parou para socorrer de novo. Esse sujeito é um louco, mas louco de tão bom. Deus gosta desses tipos, malucos na aparência. Veem a verdade por um filtro que fica no lado esquerdo da cabeça, entre os olhos e a orelha. Ali entram os sons do silêncio que só esse lado esquerdo ouve. Lá na fila do céu estão os que não temem a morte. Mas não os covardes que não querem enfrentar as agruras da vida. Não ter medo da morte é atingir a consciência de que tudo é igual, ou seja, não existe um fim.

Como emagrecer

A desgraça de emagrecer. Sempre na idade em que se ganha mais dinheiro e tudo está à disposição. Entrada: maionese de atum. Prato de fundo: camarões gigantes ao molho branco com bacon e muito tempero. Tudo regado por um vinho francês daqueles que só se compra lá. Sobremesa: a torta “vó Nilza” da Margareth. Comer isso tudo como se estivesse no paraíso, flutuando, ao canto dos anjos que tocam um “smooth jazz”. Desperta o relógio. “Ei, o que é isso? O que foi? São Pedro está chamando?” Nada disso: é a nutricionista trazendo à realidade. Infeliz dessa nutricionista. Entrada: alface, pepinos e tomates. Prato de fundo: beringela cozida sem sal e abobrinha refogada. Sobremesa: gelatina diet. Líquido: duas horas após a refeição e...água sem gás! Pesadelo. Saio da mesa e vou para o julgamento no tribunal. O juiz anarquiza minha tese e perco a causa importante: por que não trouxe minha doze? Neurastenia de esfomeado.
Quando o Collor ganhou as eleições e tornou-se presidente, disse que governaria para os “descamisados” que sofriam pela fome. Todos os dias, olhava pela janela do meu gabinete no tribunal que ficava na rua Mostardeiro e via aqueles burgueses correndo no Parcão sem camisa, suando, com as feições de dor. Esses eram os “descamisados” do Collor, sem dúvida, que deviam ser os clientes da tal nutricionista. Xícara de chá com uma fatia de pão de fibra torrado e um pouco (simples pitada) de margarina diet. Houve um assalto no Moinhos de Vento. Entraram no apartamento de um casal que consultava a nutricionista: apontaram para eles uma “banana split” com muito marschmalow, com muito chantilly e dois morangos enormes de enfeite. Ameaçaram: se não disserem onde estão os dólares jogamos o sorvete no chão. É óbvio que os ladrões saíram com os dólares. No Cur Hotel em Gramado, onde uma semana de tratamento para emagrecer custa quase dez mil reais (cinco mil dólares), algumas pessoas fogem pela janela do quarto, à noite, para comprar chocolate.
Bobagem, meu filho, tem que conservar a saúde. Não vê eu, aqui, com meus noventa anos? Levanto, me desmontam e colocam na sala na frente da TV, onde assisto à missa na Rede Vida. Me desmontam de novo e montam na mesa, onde como aquelas delícias: abóbora, arroz integral e carne de peixe sem sal ou tempero. Novo desmonte e durmo até às quatro. E assim vai... Bem, pelo menos concluo que o caixão vai ser menor e mais barato. Em compensação, os vermes reclamarão: “mas que família desleixada que envia para nós essa refeição estragada?” Terrível: reclamação de vermes na tumba, com as bandeiras do MST.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Motivações para julgar

Se você é um advogado, cuidado. Tente saber quem vai julgar o seu processo. Existem algumas motivações lamentáveis para o julgamento.
Se o juiz é uma pessoa amargurada a tendência é simpatizar com uma das partes e decidir contra a outra. Quem está tomado pela dor ameniza sua amargura compatilhando-a. Nas causas contra o poder público (União, INSS, Estado, etc) em geral esse tipo de magistrado julga sempre a favor desse ente abstrato. É porque só consegue fazer sofrer, visivelmente, a parte ou seu advogado. No processo penal, do mesmo modo. Condena sempre. O perfil psicológico é esse: se a minha vida é uma droga a dos outros tem que ser igual. É, no mínimo, uma motivação inconsciente.
Existe o juiz carreirista. Favorece o poder público porque será o eleito, no futuro, para os tribunais de Brasilia, com raras e honrosas exceções.
O juiz que sofre de carência afetiva só quer agradar para atrair aprovação. Julga tudo procedente. O preferido da classe dos advogados.
Sem dúvida, existem vários outros tipos humanos que vestem a toga para desonrá-la, tornando os julgados reflexos das fraquezas de sua personalidade.
O bom advogado percebe e tentar evitar, dentro da lei, que determinado magistrado aprecie sua causa. Um dos saltos do tigre na profissão advocatícia.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Alô, quem está do outro lado?

Alô. Sem voz e sem eco.
Quem está do outro lado?
É engraçado falar sem ser ouvido. E sem pretensão ou necessidade de ser ouvido.
O monólogo de um surdo. Jogo sem perdas de palavras vagas.
Recolho-me à espera de um eco, num canto do computador, bem no meio do seu coração.
Vou dizer palavras tristes e alegres. O que importa é estar aqui, vivo, dedilhando este teclado como se fossem teclas de um piano numa sinfonia de paixão.
Alô. Quem está aí? Na verdade, a voz que aguardo está dentro de mim e por ela clamo.
Mas, enquanto isso, quem sabe exclamas?! Uniria tua solidão à minha e, juntos, moraríamos no mouse do nosso pc. De graça, com graça, sem perfumes e com certeza.