quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O drops no bolso

No interior do berço em que era posto para dormir, ao lado da cama onde ficavam meus pais, por entre as grades via a fresta da cortina vermelha de veludo do quarto de vestir. Durante três noites não consegui adormecer senão de manhãzinha. É que durante toda a madrugada vultos se sucediam por detrás das cortinas. Parecia que discutiam, brigavam. Agora que estou dentro da minha cabeça busco essas imagens, sem sucesso. Aqui há uma luz, mas com sua luminosidade fraca não me permite ver fantasmas. Seriam almas do outro mundo?
Alguns anos depois, passaram-me para o quarto do meu irmão, bem longe dos meus pais, isolado. Havia uma janela para um muro e contavam que, certa noite, uma estranha mão passou pela janela. Jamais podia fechar a janela, quando me deitava. Aquela mão poderia aparecer e não saberia para onde fugir, especialmente admitir o medo diante desse mistério. Sempre a vergonha do medo, como se esse fosse o verdadeiro fantasma.
A Sandra era a prima favorita. Adorava a Sandra. Sua presença me induzia o sonho. Era o símbolo da atenção. A prova de que eu existia e alguém se importava comigo. Doce Sandra, moreninha esperta com a ternura dos anjos. Ela foi chamada para descobrir meu esconderijo, quando minha mãe me obrigou a me esconder para evitar as injeções róseas que quase atravessavam meu pequeno braço e visavam a abrir meu apetite.
Quantas sensações de infância! Meu avô a me ensinar poesia: “Ó tu que vens de longe; ó tu que vens cansada.” Foi ele que estruturou meu coração, ensinou-me a grandeza da simplicidade.
Meus amigos: o Formiga, o Xuxa, o Flávio, o Boris, o Delvair, o Alemão. Uma luz radiante iluminava minhas expectativas naquele tempo. O jogo de bolinha de gude, o pião. O brinquedo de deserta, paralisa. As caçadas de passarinho ao redor da cidade. Em geral rebentava a borracha do bodoque. O jogo de bola na calçada. O Barbará era comissário de polícia e vinha de carro de praça para tirar a bola com a qual jogávamos na calçada da rua Ismael Soares. Ficávamos atordoados e quase sempre ele conseguia pegar a bola e rasgava. Raramente, o Flávio fugia com ela para dentro de sua casa, que quase era invadida pelo policial diante do grave delito que praticávamos. Por sorte, a avó do Flávio era braba e corria com o Barbará.
O time de futebol de salão, a coleta de dinheiro na rua Sete para o fardamento. A sede na casa do Xuxa. Regras rígidas, à moda talibã. Não podia dizer nome feio no interior da sede senão era multado. Um dia, o Boris disse “merda” e lhe foi imposta a multa de cinco cruzeiros, que revertia para o caixa do time. O judeu indignou-se, enfureceu-se, ameaçou demitir-se caso não fosse perdoada a dívida. Ansiosos por comprar uma bola nova não perdoamos o Boris.
Na praça de desportos jogávamos até anoitecer. Quando não tinha bola de borracha era de pano mesmo.
Aos domingos havia cinema no Glória. Cada um levava revistinhas do Fantasma, do Capitão Marvel, do Tarzan, do Opalong Cassidy. Vendiam-se ou trocavam-se por outras. A sessão era dupla, sempre com um filme de mocinho. A cada corte uma vaia e assobios da platéia.
Lembro da ocasião em que foi lançado o produto “Sonrisal” em Bagé. Davam uma amostra para cada um dos espectadores que entrava no Glória. Em seguida, viam-se as bocas espumando, os guris apavorados com aquela coisa ardida na língua. Ninguém imaginava que era necessário diluir na água.
Aos sábados, anos depois, íamos para a boate do Clube Comercial. Mágico ambiente em que o sorriso das gurias, sempre acompanhadas pelas mães, despertava um calor que vinha muito de dentro, de um extremo irreconhecível. Como dançar sem uma ereção? O terror de evitá-la. Colocar drops no bolso, encolher-se, curvar-se. Maldita calça apertada.
Bagé, minha saudosa Bagé, onde tudo prosseguia e a lugar nenhum se ia, no ritmo de Jorge Luis Borges em seu “Livro de Areia”: Nunca estiveram em Lobos? Dá no mesmo; não há um só lugarejo na província que não seja idêntico aos outros, até no acreditar-se diferente.

Um comentário:

  1. Que bela e nostálgica narrativa... Confesso que engolindo as letras deste post refrescou-me a memória com lembranças de uma infância sadia que vivi, por coincidência, na Rua Ismael Soares em Bagé. Tardes de brincadeiras, precisamente a beira de uma grande lareira, na sala do apartamento 22 do número 237 da citada rua. Que tempo bom! lembro a paciência do pai de um grande amigo, que gostava de levar a piazada para bater uma bolinha no Cantegril aos finais de semana, a bordo de um reluzente corcel GT azul... Que tempo bom! Mas o tempo passa e a idade, juntamente com as responsabilidades vão crescendo. Hoje, são lembranças, boas lembranças que fazem a nostalgia inundar a alma com um sentimento prazeiroso de ter tido uma boa infância.

    "Tio" Fábio envio-te um forte abraço.

    Guilherme Costa.

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