quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Famílias

Meu pai me dizia que era muito importante anotar as passagens interessantes nos livros. Sem medo de riscar. Adiante fui entender o sentido disso. Passeio pelas prateleiras e encontro os “Poemas” do Bertolt Brecht. Como podia o dramaturgo ser bom em poesia? Mas era. Não de um brilhantismo incontestável. Porém deixou algumas preciosidades. Hoje, quando se vive em meio à crise moral da nação são muito apropriados os versos:

“Famílias, quando lhes nascer um filho
Façam votos de que seja inteligente.
Eu, que pela minha inteligência
Arruinei a minha vida
Posso apenas desejar
Que meu filho se revele
Parvo e tacanho.
Assim terá uma vida tranquila
Como ministro do governo.”


Será que ele estava pensando no Brasil?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O louco do IPF

Na verdade, sempre acreditei pouco nos psiquiatras e nos analistas. A mente é uma caixa de armadilhas que o tempo vai aperfeiçoando. Joga constantemente. Cria atalhos, vias alternativas de fuga. Quando se pensa que está próximo de uma definição, o labirinto se complica ainda mais.
Como regra, fui um desastre em minhas observações. Previ muitas coisas em relação a determinadas pessoas. Errei quase na totalidade das vezes. Por exemplo: fui no casamento da Tania e achei que o Ilton não a faria feliz. Não sei como explicar, mas era um sentimento lá de dentro, aquela sensibilidade de asno. Cheguei a comentar minha apreensão com o Ivo e a Anita. Por sorte, minha burrice se confirmou. Ele não pode ser melhor marido e pai. Fantástico o Ilton. Daí que já não me problematizo muito ao prognosticar coisas ruins. Normalmente, acontecem ao contrário. Na realidade, se eu fosse psiquiatra ajudaria muito a povoar os manicômios. Talvez eu mesmo fosse uma aquisição na ala dos desnorteados.
No Instituto Psiquiátrico Forense, tinha um louco que era brigadiano, ou seja, um capitão da Brigada Militar que cometera um crime e fora parar naquele manicômio forense. Um dia, estava parado no pátio e um outro interno varria as folhas caídas no chão. Ao chegar nos pés do brigadiano, este fuzilou-o com o olhar, advertindo-o: “mais respeito, não vês que sou um policial militar?” O alienado varredor olhou de soslaio e respondeu de imediato: “aqui todo o mundo é louco” e seguiu varrendo os pés do capitão. Isso se repete muito na vida. Especialmente para aqueles que vivem pendurados nos cargos, deliciando-se com seu poder. O general Mourão Filho, que fez a Revolução de 64, quando se reformou ia ao quartel general e nem os soldados batiam continência para ele. Certa vez, vi um desembargador, que fora presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tentando entrar no prédio. Era velhinho, com dificuldade de locomoção. Teve de colocar seu celular, pasta e documentos em cima da mesa do guarda para penetrar no recinto. Quase aos tombos. Isso é o poder. Legião de puxa-sacos a que se sucede uma legião de desinteressados. Não tem mais o que dar, então não serve para nada.
Pois é...tudo é assim como um louco do IPF.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Respirar ar puro

Respirar ar puro conserva a vida. Porém, isso mais se aplica ao espírito. Respirar ar puro nesse nível é ler bons textos, ouvir música saudável, conversar amistosamente e conhecer pessoas agradáveis. Por falar nisso, dias atrás conheci uma pessoa muito camarada: o meu amigo Jader, de São Paulo. Porta aberta no olhar. Vias limpas no assunto. Trânsito fácil no argumento. Daqueles que é simples no trajar, no andar e no existir. Faz bem conhecer gente assim. Até renova a esperança.
O que eu faria se tivesse de desenhar a saudade? Lembraria, para iniciar, da minha filha amada. Traçaria um risco preto em diagonal no lado esquerdo da tela. Em seguida, à direita desse risco um outro vertical em vermelho. Por cima, tudo verde claro com um traço amarelo na horizontal. Embaixo, branco com seguimentos em matizes cinza claro e cada vez mais escuro, até fechar no lado direito. Preto da tristeza, vermelho da intensidade, verde com amarelo do sabor de vento e cinza da indefinição em estilo crescente da dúvida.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O drops no bolso

No interior do berço em que era posto para dormir, ao lado da cama onde ficavam meus pais, por entre as grades via a fresta da cortina vermelha de veludo do quarto de vestir. Durante três noites não consegui adormecer senão de manhãzinha. É que durante toda a madrugada vultos se sucediam por detrás das cortinas. Parecia que discutiam, brigavam. Agora que estou dentro da minha cabeça busco essas imagens, sem sucesso. Aqui há uma luz, mas com sua luminosidade fraca não me permite ver fantasmas. Seriam almas do outro mundo?
Alguns anos depois, passaram-me para o quarto do meu irmão, bem longe dos meus pais, isolado. Havia uma janela para um muro e contavam que, certa noite, uma estranha mão passou pela janela. Jamais podia fechar a janela, quando me deitava. Aquela mão poderia aparecer e não saberia para onde fugir, especialmente admitir o medo diante desse mistério. Sempre a vergonha do medo, como se esse fosse o verdadeiro fantasma.
A Sandra era a prima favorita. Adorava a Sandra. Sua presença me induzia o sonho. Era o símbolo da atenção. A prova de que eu existia e alguém se importava comigo. Doce Sandra, moreninha esperta com a ternura dos anjos. Ela foi chamada para descobrir meu esconderijo, quando minha mãe me obrigou a me esconder para evitar as injeções róseas que quase atravessavam meu pequeno braço e visavam a abrir meu apetite.
Quantas sensações de infância! Meu avô a me ensinar poesia: “Ó tu que vens de longe; ó tu que vens cansada.” Foi ele que estruturou meu coração, ensinou-me a grandeza da simplicidade.
Meus amigos: o Formiga, o Xuxa, o Flávio, o Boris, o Delvair, o Alemão. Uma luz radiante iluminava minhas expectativas naquele tempo. O jogo de bolinha de gude, o pião. O brinquedo de deserta, paralisa. As caçadas de passarinho ao redor da cidade. Em geral rebentava a borracha do bodoque. O jogo de bola na calçada. O Barbará era comissário de polícia e vinha de carro de praça para tirar a bola com a qual jogávamos na calçada da rua Ismael Soares. Ficávamos atordoados e quase sempre ele conseguia pegar a bola e rasgava. Raramente, o Flávio fugia com ela para dentro de sua casa, que quase era invadida pelo policial diante do grave delito que praticávamos. Por sorte, a avó do Flávio era braba e corria com o Barbará.
O time de futebol de salão, a coleta de dinheiro na rua Sete para o fardamento. A sede na casa do Xuxa. Regras rígidas, à moda talibã. Não podia dizer nome feio no interior da sede senão era multado. Um dia, o Boris disse “merda” e lhe foi imposta a multa de cinco cruzeiros, que revertia para o caixa do time. O judeu indignou-se, enfureceu-se, ameaçou demitir-se caso não fosse perdoada a dívida. Ansiosos por comprar uma bola nova não perdoamos o Boris.
Na praça de desportos jogávamos até anoitecer. Quando não tinha bola de borracha era de pano mesmo.
Aos domingos havia cinema no Glória. Cada um levava revistinhas do Fantasma, do Capitão Marvel, do Tarzan, do Opalong Cassidy. Vendiam-se ou trocavam-se por outras. A sessão era dupla, sempre com um filme de mocinho. A cada corte uma vaia e assobios da platéia.
Lembro da ocasião em que foi lançado o produto “Sonrisal” em Bagé. Davam uma amostra para cada um dos espectadores que entrava no Glória. Em seguida, viam-se as bocas espumando, os guris apavorados com aquela coisa ardida na língua. Ninguém imaginava que era necessário diluir na água.
Aos sábados, anos depois, íamos para a boate do Clube Comercial. Mágico ambiente em que o sorriso das gurias, sempre acompanhadas pelas mães, despertava um calor que vinha muito de dentro, de um extremo irreconhecível. Como dançar sem uma ereção? O terror de evitá-la. Colocar drops no bolso, encolher-se, curvar-se. Maldita calça apertada.
Bagé, minha saudosa Bagé, onde tudo prosseguia e a lugar nenhum se ia, no ritmo de Jorge Luis Borges em seu “Livro de Areia”: Nunca estiveram em Lobos? Dá no mesmo; não há um só lugarejo na província que não seja idêntico aos outros, até no acreditar-se diferente.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A terrível síndrome de limpa trilho

Há situações muito estranhas. Estava no Forte de Copacabana com a Iolanda e sentamos numa mesa da filial da Confeitaria Colombo. Pedimos dois sorvetes embora ainda estivesse farto do almoço. Vieram duas montanhas: chantili, nata, marschmellow, frutas e sorvete (ah, e a bolacha). Comi naquele silêncio de quem aproveita um canto do paraíso. Cheguei ao fim na exaustão de um queniano que se aproxima da linha de chegada de uma maratona de quarenta quilômetros. Aí a Iolanda se virou para mim: “não quero mais o meu.” Sobrara parte da montanha. Lá fui eu para completar a maratona dela. Tracei. Pagamos e saímos. Sensação estranhíssima. Senti nitidamente que eu era dois: a minha pessoa e na frente a minha barriga, caminhando independente, com vida própria, parecendo um balão. Pernas bambas: “ei, barriga, espera aí, mais devagar.”
Quando casei em 1968 tive logo três filhos. Para ganhar dinheiro trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Economizava nos detalhes. Ia em três supermercados para ver os preços mais baratos e comprava os produtos considerando isso. Pesquisa de falido. Por tal modo, grande era minha ânsia ao ver as crianças pedir comida e deixar no prato. Aquele filé à milanesa em Montevidéu com salada de batatas. Metade no prato dos guris. Não é possível. Comia tudo. O doce em Gramado. Lá ia eu. Por sorte, era magro e não havia o que me engordasse. Ocorre, porém, que adquiri a síndrome do “limpa trilho”. Até hoje, então, vou com a Iolanda nos restaurantes e me atormenta deixar os restos. Às vezes, me policio. Ela abandona aquele “coq au vin” e evito olhares para seu prato. Rabo de olho para o “coq”. Angústia. Fantasmas da época da falência. E me aproximo para comer só um pedacinho, que se transforma em dois, em... Duro. Muito duro. Só não é mais pela moleza que ficou minha barriga. Sabem, aquela que anda na frente, de vez em quando.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Corrida da Loucura

Um dia, talvez, alguém leia este manuscrito e conclua: “Pobre do Fábio, era bastante descompensado. Frangalhos de espírito expostos no frio, buscando uma harmonia e só encontrando os sons com a uniformidade da bandinha do Colégio São Pedro de Bagé”.
Precisaria ir ao fundo da memória para recordar:

"Barganhar com a lâmina que trespassa a vida. Se não der certo, arremeter numa pista estreita e limitada. Mas nunca deixar de fazer alguma coisa, quando vai se estreitando a esperança.
Algum dia de outono gostaria de receber os aplausos, ao baixar o pano. E ser uma estrela no firmamento do palco, amada e reconhecida. Todos os pedaços de mim haveriam de sorrir e achar sentido em qualquer graça. Reconheceria de longe o amigo a ovacionar admirado, escutaria os sussurros de aprovação, o menear positivo das cabeças, as palmas, os assobios. Tudo, tudo isso pelos versos declamados e os gestos de renúncia. Ser tudo por não ser nada, por saber que pouco vale ser tudo se não há transparência na palavra dirigida, se é opaca a visão e frágil o tato."

É muito bom escrever como se a cabeça estivesse a delirar. O mais útil está por detrás da lógica, raciocínio em tresvario como uma marcha-ré no estilo. Assumir a direção e desviar, correr, enfrentar as curvas das sensações, gozar com o perigo das dúvidas. Corrida da loucura.