segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A natureza do escorpião

Uma fábula. Está escrita num livro. Se não me engano, o título é “Mentes Perigosas”.
Um sapo, à beira do rio, apronta-se para atravessá-lo. De repente, surge um escorpião: “Amigo, preciso chegar à outra margem. Por favor, me carrega nas tuas costas.” O sapo atalhou: “Tua fama não é boa, pois costumas trair a todos que se aproximam de ti”, ao que o outro se opôs: “Não é verdade, estou redimido, mal nenhum mais faço a ninguém. Prometo por tudo o que há de mais sagrado que jamais te ferirei. Não abandona este necessitado”.
O sapo com aquela índole generosa que, ao coaxar, no máximo espanta as estrelas sem qualquer incômodo levar aos outros animais da floresta, assentiu: “Pois bem, sobe nas minhas costas, mas antes promete que mal algum me causarás”. O escorpião não titubeou prometendo com toda a ênfase.
E a travessia do rio iniciou-se em meio a uma conversa amistosa. Na margem oposta, vencido o trajeto, o sapo virou-se e anunciou: “Pronto, estamos aqui, podes descer”. O escorpião, sem receio, aplicou um ferrão nas costas do sapo que, em seu estertor, queixou-se: “Puxa, esqueceste tuas promessas? Por que fizeste isso comigo?” O escorpião friamente asseverou: “porque é da minha natureza”.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Incidente do Cemitério

A professora Rita Vasconcellos era um ícone da música e do balé em Bagé. Inspiração para muitas moças. Senhora elegante, de fino trato, sempre vestida a rigor. Deixou grandes admiradores. Hoje, o lindo prédio do Conservatório de Música tem seu nome.
Quando do falecimento da professora Rita, em seu velório despontava um sujeito bêbado, que chorava com imensa tristeza à beira do caixão. Cena um pouco insólita, mas inevitável.
Saiu o féretro para o cemitério da cidade, atravessando toda a portentosa Avenida Sete de Setembro. Grandes lamúrias do bêbado, em meio ao silêncio consternado da população que acompanhava os restos da inesquecível mestra.
À beira do túmulo alguém tinha que falar. Ora, quem poderia ser: meu pai, Telmo Candiota da Rosa. Em todos os lugares discursava: velórios, casamentos, batizados, posse de diretorias de sindicatos, de clubes, etc. Palavra solta no ar, aconchegava-se o Dr. Telmo pondo-se à disposição para o “encargo”.
Enquanto isso permanecia o admirador ébrio agarrado ao caixão da professora idolatrada. Lágrimas copiosas acompanhadas por gemidos amargurados.
Orador à moda antiga, com gestos teatrais, voz com singular empostação, colocou-se o Dr. Telmo em frente ao caixão, e com uma das mãos no bolso e a outra em direção ao céu disparou: “Rita, se tivesse o dom divino diria, nesta hora: levanta-te e anda”.
O bêbado arregalou os olhos para o orador e arrematou com voz arrastada: “Por favor, Telminho, não me abre essa ferida!”
O Mathias me contou essa história e o secretário do pai, Jodolnei Trindade, me confirmou porque assistiu a cena.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Uma jóia chamada André

Meu querido André. Daquelas pessoas que tem todas as cores na alma.
É bom quando o vento traz a brisa refrescante em tardes quentes. Já deve ter acontecido isso com o leitor desta página. Você está triste e sem esperança. Mas ao dobrar uma esquina topa com um amigo que lhe dá um livro do Sêneca e lhe indica o início da obra do estoico romano: "Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos."
Pois o André, que tem a fina inteligência da ironia e do humor, é um artista. De dentro. Genuíno ator, com máscara e tudo. Do bem e da alegria. Não fuma e bebe pouco. Apesar disso, encantador.
Contou-me uma curiosidade de sua trajetória que não posso deixar de relatar aos amigos.
Num teatro carioca desenvolvia-se uma peça teatral. Um velho abandonado ( o André), um cachorro cuja missão única era zelar pela segurança do idoso (um ator que voltara à cena, depois de algum tempo) e um lobo que espreitava a casa (não era um lobo, era um artista, mas esse eu não sei quem era), aguardando o momento oportuno para adentrar e comer o velhinho indefeso.
A plateia, lotada de crianças com seus pais, vivenciava a angústia do velho, que percebia o lobo aproximar-se.
Abre-se a porta com aquela mão peluda surgindo e o pobre homem começa a tremer. O cão, ao invés de cumprir o seu dever, dorme a sono solto. Grande tensão no ar. Transição angustiante. E o cachorro segue dormindo alheio a tudo. O lobo invade, aproxima-se e o velho geme. A morte se aproxima. Dos dentes do animal saltam as gotas que antecipam o prazer do jantar.
Todo o teatro treme. Unhas roidas. Mãos nos olhos. Pais abraçados aos filhos, lívidos.
Nisso, um baixinho retaco, de uns cinco anos, não suporta. Pula de sua cadeira, avança sobre o palco, aproxima-se do cão, e dispara: "acorda, seu cachorro filho da puta!"
Risada geral. Roubada a cena. Não havia mais como prosseguir.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Saramago em Brasília

Sabem, de vez em quando aumenta a desilusão com as coisas que acontecem em Brasília, capital que representa o maior erro cometido nesta república. Por lá todos se acham os donos da verdade. São reis, duques, barões, etc. Bastam-se. Vivem uns em função dos outros. Poder dentro do poder e em função de si mesmo. São os que se consideram assinalados pela mão divina para cuidar do conforto e do bem-estar do povo brasileiro. Pura bobagem.
Um dos poderes da capital insana é o judiciário, que vive a autoproclamar-se como a perfeição no acesso ao serviço público. E o pior: as pessoas são enganadas, e bem enganadas. Com raras exceções, já viram algum dos ministros dos tribunais superiores em seus gabinetes de sexta a segunda-feira? E quem faz os acórdãos, e quem revisa as decisões? Na ampla maioria dos casos esses magistrados não sabem o que estão julgando, não têm sequer idéia do que consta nos processos que decidem. Julgam cem, duzentos, trezentos casos numa sessão apenas. Ditam apenas o resultado, nada mais. E fazem de tudo para evitar que algum advogado faça uma sustentação oral.
Então, ao ler o “Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago, lembrei de tudo isso ao deparar com as primeiras letras:

Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.”

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Lá na Faculdade de Direito de Bagé

Bons tempos aqueles. Nos reuníamos nos intervalos das aulas para jogar conversa fora. Professores jovens, cheios de ilusão sobre o futuro e, em especial, sobre o conteúdo real de nossos ensinamentos. Às vezes, íamos para a churrascaria beber cerveja, dizer bobagens e narrar as experiências em sala de aula. Noites divertidas.
Por exemplo: o Binha, que lecionava Direito Civil, contou que fez uma pergunta numa prova sobre o que significava "bem indivisível por força de lei". É o caso, por exemplo, de um apartamento que não se pode dividir ao meio. O aluno respondeu: "o átomo, porque nem a lei pode dividi-lo".
O Ciro Umpierre também lecionava Direito Civil. A prova incluía a matéria sobre comoriência, isto é, a confusão gerada por não se saber quem com antecência havia morrido para efeito sucessório. Assim, ele colocou a pergunta com os pontinhos para serem preenchidos: "pai e filho viajavam juntos, tendo o avião caído, resultando a morte de ambos, sem se saber qual morreu primeiro; a este fenômeno em direito dá-se o nome de....." O aluno lascou: "catástrofe".
Quando eu lecionava Direito Penal, estava falando sobre a agravante da prática do crime com explosivos. Fui interrompido pelo pessoal do Centro Acadêmico que veio dar avisos aos alunos. Ao prosseguir, distraído, exemplifiquei com a tal agravante no crime de sedução. Risada geral. Sedução de mulheres com explosivos...
Discutíamos na congregação a proposta do Rubem Almeida de criar a cadeira de Direito Agrário. Alguém até sugeriu comprar uns animais para fazer um mini-zoo no pátio. A discussão ia acesa e o Osvaldo Moraes dormiu. Lá pelas tantas, o Carlos Rodolfo pôs em votação a matéria. O colega cutucou o Osvaldo Moraes: "e aí qual é o teu voto?" Ele acordou atônito e de imediato: "pode comprar os bichinhos, pode comprar".

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dos ventos

Sensação do desmentido. Trigais descabelados pelo vento, sopro de amizade morta.
Passear sobre a corda como um malabarista e sorver horrores com avidez. Trepar nas árvores secas e quebrar os galhos. Sorrir da desolação. Puxar a poesia no botão do computador. Encantadas rimas e ritmos computadorizados. Inspiração de teclados, linhas sem borrão, glória sem reconhecimento.
Versos falsos não andam de mãos dadas, nem choram, que isso não serve para divulgação. Versos são nadas que escolhem o momento certo para significar.
Se em todas as noites se ouvissem bandolins, toda a noite seria da Argentina, viria tagarela, meio impaciente, e sempre misteriosa. Doce é ser trágico quando se está treinado para a desgraça, com o frio de congelar o humor.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Berlim

Nunca imaginei o horror imposto pelo nazismo e, depois, pelo comunismo ao povo de Berlim.
Como se avolumavam os judeus nos campos de concentração, os líderes nazistas fizeram um Conselho numa cidade do interior para discutir a forma mais fácil e rápida de matar e livrar-se do estorvo. Daí os fornos nos campos de concentração.
É o testemunho do insólito.
No lugar onde havia o bunker do Hitler (próximo ao Portão de Brandenburgo) há um terreno nu. Não se sabe o que fazer ali. Lugar amaldiçoado.
Depois, o comunismo. O muro. Os olhares tristes para as paisagens longínquas e inatingíveis. A saudade do Reno, dos parentes nunca mais vistos.
Mas o que mais impressiona é a mudança do enfoque no relacionamento do ocidente e do oriente. Antes da queda do muro, o ocidental agia como salvador de seus compatriotas perseguidos. Depois, passou a vê-los como perseguidores, porque os impostos foram aumentados para sustentar a pobreza que emergia com as muralhas caídas. Os comunistas, para sustentar o pleno emprego, estimulavam a capacitação para o trabalho genérico. No ocidente, ao contrário, recrudescia a especialização com as técnicas modernas. Como utilizar, então, mão de obra de uma gente sem conhecimento específico quanto aos métodos de trabalho? Até hoje mantém-se esse clima de desconfiança. Difícil.
Na Alemanha, porém, tudo é grande, perfeito, bem acabado e limpo. O país está em obras. Não para nunca.
A viagem pelo mundo germânico é uma experiência fascinante. Especialmente para quem aprecia uma boa cerveja.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Os versos do Tonico

O meu amigo Tonico também escrevia poesias. Guardei alguma coisa dele. Olhem só:

"Quando eu morrer
procurem os pedaçoes de minh'alma
pelo mundo,
porque nada fiz sem alma.
Procurem pelas praças,
jardins e gramados;
pelos montes, planícies e planaltos;
por lugares que sonhei e nunca fui;
nas mulheres que beijei e não amei;
nas mulheres que amei e não beijei;
nos cavalos, nos cachorros e nos pássaros;
na bandeira da República que não houve;
pelos livros que eu li e que não li;
pelos escritos que, por certo, eu deixei;
pelas flores, que eu jamais consegui amar;
pelas estrelas que eu gastei de tanto olher;
pelos lápis, pelas máquinas, pelas letras;
pelos automóveis: os que não tive e o "Austin";
pelas armas;
nas andanças, que não fiz;
nos caminhos, que não fui;
na beleza, na verdade que eu cri;
nas modernidades do mundo que mal vi...
Feito isso, levem-na, empacotada por mãos femininas,
para o túmulo em que largaram meu corpo.
Dias depois, plantem uma semente
no centro da sepultura:
desta meneira poderei continuar
a olhar e amar o mundo que mal vi."

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Nirvana do Formiga

Tinha um amigo de infância: o "Formiga". Escrevia versos sob o pseudônimo de Moisés Girao. Hoje, disseram-me que mora na França. Um dos poemas conservei comigo e agora transcrevo:

NIRVANA

O simplesmente
apagar-se
sem luz e sem sombra,
sem o riso e a lágrima,
sem a saudade do que fui ou do que serei.
Sem ter estórias para contar
e nada para aprender..
Ser o espaço limitado do fim,
o reduzido ao que não se pode reduzir.
......................................
Vem, ó morte, vem depois da morte
doce e inevitável.
E então,
LIVRE,
Nirvanizar-se
como o sopro à chama de uma vela,
e não ser a vela,
e não ser a chama,
e não ser o sopro!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Retratos

Resumir a alma. Por num ponto todo final e a decorrência. Sequência de preocupações cotidianas, úteis, engajadas. Sem acordo.
Nas manhãs serão outras as consequências. O importante é agora. Dançar, cantar, beber, amar. Pichar a solidão. Reticente ironia.
Um dia, esqueci das bagagens. Voltei e elas estavam lá. Os meus retratos. A evoluída inocência para o descaso. Ponto de interrogação. O escorregador por onde deslisavam as evocações e os cantos da infância.
Seguiam os gestos em procissão e saudade. Malícias, lascívia: o imponderável.
Quando menino, aprendi a fazer orações. Ganhei um rosário preto, e adorei Maria, a mãe de Jesus.
Apesar disso, cresci um descrente intermediário.
Um crente não tem bagagens e as minhas estavam lá. Descoloridas, com as pontas um tanto rotas. Duvidosa honra. Memória do que nunca aconteceu. E a sensação de já ter acontecido.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Perdas

Perdas são passos distraídos
sem visita do tempo.
Tardes esgotadas, janelas fechadas,
um jeito de não saber chorar.

Perdas são gotas que não caem,
números que faltam,
poesia que não encanta.
Regra de por o fim.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os meus versos

Foram anos em que resisti
às sombras do meu tempo.
Deixei passar os versos
como se abandonam filhos.

Não soube registrar a digital
neste papel de mundo.
Esqueci do ritmo e da rima,
desaprendi o mistério.

Fui um caminhante de estrada,
sem pedir carona.
Em verdade, sem ter a
quem pedir carona,
e não faltavam anjos no caminho.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Estradas retas

Crises e palavras gastas
Volume de noite matinal.
Pudesse trocaria palavras e crises,
colocaria a máscara,
reuniria os anjos,
e ponto final.

Dores são estradas retas
em que não se olha para trás.
Caminhos de interrogação,
sinais confusos, estrelas erradas.

Há um jeito de ter soluções:
é desvendar o mistério
dessa dúvida que amor renega.
Dormir. Não sonhar. Não acordar,
árvore, folha, vento.

segunda-feira, 29 de março de 2010

O Guia

O rei viaja no olho da águia e é o dominador dos ventos.
Como uma estrela guia seus súditos pela ordem do cosmos.
Harmoniza as energias, conduz pela escuridão. Modela o que é belo. Desvenda os mistérios.
O rei traz o tom sublime na voz. Como uma flecha movimenta-se em seu eixo definido. É o próprio caminho, sem curvas perigosas, sem desvios incertos, sem atalhos de traição.
O rei é sóbrio e arrojado, transita pelas contradições sem jamais se desviar da rota. Herda a virtude da atenção, como delegado da fortuna.
Esbanja cicatrizes. Não foge das dores. Mantém a espada e a defesa. Atento ao inimigo, lidera seus exércitos. Na linha de frente é o primeiro da fila, o mais próximo da morte. O mais decidido ao sacrifício. Sempre o último a abandonar o campo de batalha.
Renuncia as vantagens. Protege seu povo.
Desconhece a discriminação. Modela um templo em seu coração e cuida-o com amor.
O rei é a ciência que descobre os opostos. Tempera as contestações, desenvolve o mais sutil sentido de justiça.
Conhece a exata hora de ceder, de chorar, de recuar com estratégia, de perceber o aviso que vem com a brisa.
O rei não conhece o sabor da tirania. Experimenta a cólera para a proteção dos justos. Recusa-se a odiar e repudia a vingança.
Não ofusca o brilho de ninguém.
Desafia a dimensão do tempo, da vaidade.
Ordena como sábio, concilia como anjo, pune como um pai.
Um rei é um rei dos homens e de seus sonhos, dos animais, das plantas, das águas, das montanhas e das planícies.
Cauteloso, observa o movimento e intui os episódios. Marca os traços da vida como se fosse o ritmo de uma dança.
O rei é maior do que todos sem desprezar o mais humilde de seus servos.
Vem do Leste, caminhando por entre as nuvens. E, quando parte, nunca é esquecido.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Político de Honra

Estou lendo “O Seqüestro dos Uruguaios” de Luiz Cláudio Cunha. Um jornalista. É interessante como os jornalistas têm estilo interessante. Leitura gostosa, emocionante.
Cunha vai narrando as agruras dos infelizes castelhanos e de seus filhos pequenos. O terror de uma ditadura. Incrível como as pessoas não fazem a menor idéia do que é viver num regime ditatorial.
O que mais me incomoda são os falsos esquerdistas, que fazem de tudo para desmoralizar a democracia, criando o clima propício para voltar o estado forte.
Lá pelas tantas, no livro citado, o autor explica as reações do então governador do estado do Rio Grande do Sul, Synval Guazelli, às tentativas de encobrimento do sequestro dos uruguaios. No fim do capítulo 11, lê-se: “Emendou com uma declaração de princípios, solene e definitiva: - O esclarecimento dos fatos se constitui em questão de honra, tanto para as autoridades federais quanto para meu governo e, acredito, para a própria nação. O governador gaucho estava colocando à prova mais do que a honra de seu governo. Synval Guazelli estava apostando sua biografia.”
Lembrei do início de minha vida de advogado, quando trabalhava com o Dr. Pinheiro Machado, a quem todos chamavam carinhosamente de Pinheirinho, reflexo de seu perfil simpático. Ele era comunista assumido. Foi preso três vezes, tendo seu escritório invadido e vasculhado. Era um excelente defensor das causas referentes ao direito administrativo.
Pinheirinho me contou que um dia fora com o deputado Synval Guazelli visitar um colega, que era preso político no Dops. Ao se despedir, o político vendo a humilhação a que era submetido seu amigo, chorou. Esse era o viés do espírito nobre de Guazelli.
Hoje, infelizmente, é quase impossível apontar essa têmpera em algum parlamentar brasileiro.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O meu papel de parede

O sorriso de uma criança é uma coisa que dá gosto na vida. Acende a luz num espaço de alegria dentro da gente. Olhar aqueles olhinhos marotos, cheios de energia, transmitindo o sentido de que ainda vale a pena. Todo o desgosto corre pela estrada lateral. O sorriso imuniza o humor e a viagem prossegue sem solavancos em direção à surpresa agradável. Sensação de leveza e água cálida a confortar o corpo.
Todos os dias vejo esse sorriso e renovo a esperança. Ainda há gotas de orvalho neste deserto. Há momentos em que nosso carro é puxado por cem cavalos. Certas tardes faltam cinqüenta; outras, oitenta. E os restantes se esforçam ao máximo para puxar a carruagem, que anda lentamente. Mas os olhinhos cintilantes à minha frente revigoram os cem cavalos. E eles voltam a correr com decisão.
Experimente isso. Ponha como papel de parede de seu computador a foto de uma criança amada, de preferência com um riso espontâneo. Quando começar sua jornada, a visão transbordará a beleza da ingênua graça, invadindo seus nervos, contaminando seus neurônios, afagando seu peito. Brisa inesperada numa tarde quente e sonolenta.
Vitamina sem comprimidos. Um afago de anjo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Coisas de Fortaleza, cigarro e chopp

Essa guriazinha linda que vocês viram entrar aí no blog é a Renata. Mimosa como a minha filha. Agora ela trouxe ao mundo a Mariela, outra pintura.
Nos anos 80 vivemos em Fortaleza. O Ivo, de quem não consigo lembrar sem chorar, era a ilha da minha alma. Amigo e irmão. Porto onde sempre podia atracar meu navio, ora com peças cômicas, cigarro e chopp, ora com angústias e delírios. Mas sempre com cigarro e chopp.
Coisa fantástica a gente conviver com alguém e ter certeza absoluta de sua fidelidade. Amigo, verdadeiro amigo, com doação de espírito. Era assim que esperava, todos os domingos, o Ivo, a Vera Lúcia, a Renata e a Fernanda, no meu sítio no Icaraí, ao lado de Fortaleza. Passava o fim de semana preparando a piscina para as duas doçuras. Fernanda grudada em todos: “Vai pular? Vai pular?” Renata vidrada na Adriana, com aquela carinha de encanto.
Tempos de calor úmido, céu estrelado e saudade no ar.
Voltamos para o sul e passei a ver pouco as duas estrelinhas, embora sempre estivesse a par de sua vida pelo Ivo.
Agora, o Márcio ganhou a megasena: casou com a Renata. Ele sabe e reconhece isso e exatamente por esse motivo também é muito amado. Os dois, com Mariela, no seu aconchegante apartamento, aproveitam o embalo sublime do amor, dando exemplo de esperança.
Mariela, meu anjo, teu avô está te olhando lá de cima, com aquele olhar maroto, certamente contando vantagem sobre a neta e com um copo de chopp me esperando.
Não esquece dele.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Fases difíceis

Há fases difíceis na vida. Parece que correm nas veias fantasmas famintos, vampiros da graça sedentos de sorver as ternuras que restam. É aí que a gente gostaria de ser um livro. Passaríamos da folha 74 para a 182, sem qualquer temor. Vários capítulos pulados, como um salto nas extremidades de um abismo. Daqueles abismos do “Senhor dos Anéis” em que tudo é mágico. Mas, infelizmente, não dá. A leitura pesada, repetida, monótona e doída tem que ser feita na íntegra. O único consolo é que se sabe que vai chegar à página 182, mais cedo ou mais tarde. E, nesse momento, haverá mais luz na janela, um raio de sol e uma brisa refrescante no ânimo.
Quando se envelhece os tombos são mais repetidos e perigosos. Riscos de músculos cansados, olhos com as nuvens do tempo e distração do vento. Mas há uma vantagem: a gente sabe melhor onde se agarrar, percebe que os finais somente o são na aparência. E mais: olha-se pela veneziana e percebe-se a tempestade que se aproxima e que ninguém vê. Dá um espaço para recolher-se, abrigar-se e viajar na introspecção dos cabelos brancos. Sabe-se inebriar a solidão, transformá-la em caleidoscópio de cores vivas. E tudo segue para um final cuja distância jamais é percebida, não interessa se a idade é de 30, 40, 60, 80 ou 90 anos. Só há juventude no momento em que se vive; a velhice permanece em chorar o passado. Isso tudo numa tarde de janeiro, com calor escaldante, sem nenhuma nuvem no horizonte a indicar chuva.