quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O guarda dorminhoco

Morei numa rua onde havia casas e edifícios e uma guarita com o guarda contratado para zelar pela zona toda. Certo dia ocorreu a vaga para essa função e alguém habilitou-se. Dadas as instruções o candidato ocupou a guarita. Um aposentado que tratava de complementar os proventos. Passada uma hora foi fazer xixi no banheiro que fora posto à disposição num dos prédios. Ao retornar à guarita o rádio do guarda tinha sido furtado. De imediato, dirigiu-se ao síndico pedindo as contas. Sofria do coração e negava-se a trabalhar num local tão perigoso. Agora, resido em outro edifício. Pegava sol a guarita do porteiro. Queixou-se do calor. O síndico, então, mandou colocar insulfilm nos vidros. De fora não se enxergava nada. Breu total. Foi o que bastou para que o vigia noturno se acomodasse em sua cadeira e varasse a sono solto a madrugada. Reunião do condomínio. Indignação total com o dorminhoco. Alguém advertiu que a escuridão na guarita passara a estimular o sono do tresnoitado vigia. Opiniões, discussões mais azedas. E o síndico objetou indignado: se algum ladrão aparecer não verá o guarda dormindo o que se torna essencial para nossa segurança. Nesse momento, um pouco confuso, comecei a desconfiar que estava sendo inútil a reunião.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O vaso quebrado

A minha amiga Lorena me disse que os orientais pegam os vasos quebrados, unindo cada pedaço até reconstituí-los. Mas utilizam o ouro para essa reconstituição. Assim, ao invés de perder o valor, a porcelana ganha maior preciosidade. E, portanto, aumenta seu poder de encanto. Os cacos passam a ter vida e a estética do conjunto renova a peça, fazendo readquirir o seu brilho. Isso parece ser muito criativo. Fico a pensar, entretanto, se esse trabalho demorar muito a ser feito, será que ainda estarão disponíveis todos os cacos? Assim, quando deixarmos cair no chão da discórdia, da impaciência, da intolerância, da falta de humildade o vaso da nossa contingência, o melhor a fazer é tratar de juntar os pedaços e providenciar imediatamente a reconstituição com o ouro do perdão. Caso contrário, os cacos resvalarão pelos meandros do ressentimento, rolando pelo sulco formado pela raiva e desaparecerão. E, aí, ao juntar a porcelana restará um buraco que, por menor que seja, deixará passar aquele vento de Chicago que congela tudo por dentro. Não se iluda. Cuide de seus vasos. E, se deixar cair algum deles, junte tudo às pressas, colando os cacos com o ouro do diálogo amoroso.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A terapia de Deus

Cristóvão Albuquerque e Silva. Cristóvão, que não era Colombo, embora como ele pudesse descobrir terras desconhecidas sem, contudo, lograr saber como desvendar o segredo das emoções. Por isso Cristóvão decidiu cursar psicologia. Sempre pensou que se a filosofia tentava resolver o ser e o nada a psicologia nem isso conseguia. Mas levou adiante seu intento. Formou-se e montou uma clínica bem sucedida. Passava as tardes em seu consultório, ouvindo as lamúrias dos pacientes, com muita paciência. Costumava dizer que paciente era o terapeuta. Já fazia uns trinta anos que desenvolvia esse trabalho numa rotina indigesta. Até que um dia teve uma surpresa. Alguém lhe mandara um e-mail para marcar consulta. Não era nem mais nem menos do que Deus. O quê, Deus? Não pode ser. Quem era o velho psicólogo para ser o escolhido? Terapia de Deus? No dia marcado lá estava Ele. Um homem comum. Sem barba, calçando tênis e vestindo jeans. Como vou fazer terapia no Senhor que é um ser perfeito? Como compreender a perfeição? Deus, simplesmente, objetou: e eu que sou um ser perfeito como entender todas as fragilidades da imperfeição? Estamos empatados. Desconcertado, Cristóvão pigarreou e resolveu começar a análise, ainda que por dentro estivesse estupefato: análise de Deus! Estou cansado, começou o paciente. Cansado de tantas pessoas se matarem invocando meu nome. Cansado de todas as reclamações, súplicas e penitências dirigidas a mim. Criei os homens à minha imagem e eles não querem assumir suas fraquezas. Por que tamanha destruição de meus rios, de meus pássaros, das minhas terras? Onde falhei? E ainda tenho que me atribuir a perfeição. Esse é o dilema patético da vida: a toda hora me chamam para resolver problemas que, na verdade, eu mesmo criei, porque fiz esse ser que dominou o mundo com sua tecnologia imperfeita e a desmedida pretensão de modificar o sistema. Esqueceu a regra básica que é amar o seu semelhante. Deus, depois de um fôlego, prosseguiu: acho que o mal teve início quando o primeiro homem começou a interpretar as coisas. No dia em que Adão virou-se para Eva e indagou sobre o que seria mesmo amar iniciou-se a interferência da dúvida e a necessidade de negar. Como vou compreender o erro se sou perfeito? Não vivi tal situação, não sofri, não chorei, nunca pedi nada porque não tenho a quem fazê-lo. Após breve silêncio, Cristóvão, meio constrangido, balbuciou: e não seria melhor fazer a humanidade esquecê-lo? O homem seria responsável por sua existência, dominaria o destino. Talvez pudesse entender que a felicidade passa por sua capacidade de decidir. Enquanto isso Você tiraria umas férias prolongadas num outro planeta para recuperar esses olhos tristes. Deus baixou a cabeça e sorriu suavemente. E, quando se preparava para prosseguir, tocou as seis horas no relógio do consultório e Cristóvão acordou em sua poltrona reclinada, depois de um dia atribulado. Bastante aliviado por não ter que concluir nada do terrível mistério que é ser o psicólogo de Deus.