segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) cap. III

De manhã, acordou bem cedo. A chuva dera uma trégua, deixando que alguns raios de sol penetrassem no apartamento. Assustado, Jaali levantou-se mansamente, olhou pela janela e viu os fregueses remanescentes do cine Áurea, que levavam suas angústias de volta para casa. Olhos fundos e pretos de habitantes da orgia.
Em passos cuidadosos rumou para as outras peças. Muita sujeira. Abandono total do imóvel. O banheiro quase destruído. Estranha era uma peça que constituía um avanço do apartamento com um teto que se encontrava rompido. Um buraco bem grande no teto, que deixava entrar a claridade do dia. Certamente, há anos aquela moradia não era habitada, porque naquele lugar havia um bando de pombas, que penetravam pela abertura. Ali faziam seu viveiro.
Jaali permaneceu por horas no apartamento, mirando a rua de soslaio para não ser descoberto. Ouvia, às vezes, algumas vozes que vinham das outras moradias e também da “Casa São Sebastião”, que ficava ao lado do edifício, e que viera depois a conhecer.
Chegou a noite e aquele lugar voltou ao silêncio, rompido apenas pelas conversas dos frequentadores do Cine Áurea.
A fome e a sede insuportáveis exigiam uma providência. Teria de arriscar algo. Mas esperou a madrugada. No momento certo, escalou a abertura da peça e chegou ao telhado do prédio vizinho. Arredou algumas telhas e alcançou as tesouras de madeira que as sustentavam. Por um alçapão conseguiu acesso a um salão onde deparou com um mundo de imagens. A “Casa São Sebastião” estava repleta de imagens de santos e peças africanas. Jaali sentiu-se um pouco em casa, ainda que tão-só pela frieza das estatuetas. Não pode deixar de admirar um negro que fumava um cachimbo. Porém, a frustração foi inevitável porque nenhuma comida fora descoberta. Afinal de contas, estética não combina com estômago carente. Teria de continuar a busca.
Voltou para o telhado e seguiu adiante. Chegou à avenida Julio de Castilhos e jogou-se na calçada. Por pura sorte, acabou por penetrar no “Atacado do Beto”, que vende toda espécie de guloseimas, e que ficava no outro lado da rua. Fartou-se e fez um carregamento para seu refúgio.
Jaali em seu apartamento assombrado e fantasiado pelo cansaço começou a experimentar a saudade de seu país. Solidão sentida. E assim foi mais uma noite do pobre imigrante, já agora com a transferência da dor do estômago vazio para o coração machucado. Procurou amparo na imagem do negro com o cachimbo que trouxera da “Casa São Sebastião”. Companhia silente mas agradável, cor da sua pele, que fazia lembrar do avô que nunca mais vira.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) cap. II

Dois dias passados, Jaali decidiu abandonar o navio. Era demais o desconforto. Com pés de pluma seguiu até encontrar a saída. Madrugada, completo silêncio, o guarda sonhando com seus fantasmas, nada impedia a fuga. E assim foi.
Jaali caminhou pelo cais do porto, tentando abrir uma das tantas portas dos armazéns e, finalmente, conseguiu penetrar no armazém A-15. Sacos e sacos de cereais empilhados. Aconchegou-se num canto e ali ficou com a assombração dos ventos das tempestades de agosto. Chovia muito e o frio penetrava por debaixo das portas que davam para a avenida Mauá. De dia, subia na pilha de sacos e admirava o movimento dos carros e das pessoas que iam trabalhar nos edifícios próximos. A fome apertava e o frio desafiava uma reação. Teria que sair dali. Mas como? Para onde ir?
No terceiro dia não suportou mais. À noite, quando desperta a oportunidade para o que é furtivo, pulou por um buraco que havia no teto. Esgueirou-se e conseguiu atingir o chão pelo lado de fora, deixando para trás o armazém A-15. Atingiu o muro, escalando-o com facilidade. Estava na avenida Mauá. Ninguém. Um carro que passava de vez em quando. Pôs-se, então, a caminhar. Viu um prédio imenso que o surpreendeu. Em verdade, era o mercado, imponente no seu amarelo silencioso. Prosseguiu pela avenida Julio de Castilhos. Por sorte não encontrou viva alma. A cidade mais parecia um mundo sonâmbulo. Quando chegou à Rua Vigário José Inácio, dobrou à esquerda e viu a porta aberta do edifício “Carlos Daut”. Não titubeou e entrou às pressas. Dois elevadores à frente. Não sabia o que fazer. Subiu as escadas e, de repente, viu que a porta do apartamento 1035 estava apenas encostada. Entrou e enxergou pouca coisa porque a escuridão era completa. Deitou-se no chão e dormiu.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Jaali Hru Ra Hotep (Poderoso sol) capítulo I

Quando decidiu entrar naquele navio para abandonar sua vida infame, Jaali Hru Ra Hotep não poderia imaginar as agruras que viria a sofrer. Esgueirou-se por trás da casa de máquinas, invadindo o porão úmido e fétido. Ali, por certo, ninguém viria e permaneceria seguro até o destino. Mas que destino? Não tinha idéia do que poderia acontecer ao fim de uma viagem desconhecida. A esperança, porém, era chegar à América e ver todo o cenário deslumbrante das construções e daquele povo cheio de heróis.
E assim foi. Dias e dias no mar, espreitando como um rato o alimento que sobrava, comendo pão velho, carne estragada e bebendo água suja. Tudo isso levava a enjôos constantes, às vezes fervendo de febre, cólicas agudas.
Não entendia bem o que falavam, mas lembrava algo de um primo seu que fora preso em Moçambique e que ouvira uma língua estranha. Quando caçavam, seu primo repetia as palavras que ouvira. Algumas, agora no navio, escutava com atenção, embora sem saber o que significavam.
Sozinho na escuridão só conseguia lembrar-se de coisas tristes de sua infância, sempre na rua, sem os pais que haviam sido mortos pelos soldados revoltosos. Correndo atrás de comida, correndo dos outros meninos, correndo da polícia. Cresceu correndo, fugindo.
Certo dia, ao ouvir os homens chegando para o trabalho nas máquinas, percebeu que alguma circunstância havia mudado na viagem. O navio não balançava tanto. Será que o mar era calmo pelas redondezas? Jaali Hru ignorava totalmente que, em verdade, a embarcação penetrara na Lagoa dos Patos em direção a Porto Alegre. Pobre rapaz. No máximo as construções que veria seriam o estádio beira-rio, o centro administrativo e a receita federal. Errara de América. Acabara zarpando para a pobre.
Um silvo a penetrar no silêncio da noite, a lentidão do barco, a atracação. Conversas, gritos de ordem, desembarque. E assim foi pelo resto da noite.
Jaali Hru parado, com medo silencioso, aguardando pelos acontecimentos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Esses juízes...

No tribunal os juízes eram muito irreverentes. Lembro que o Haddad residia em Curitiba e, em todos os fins de semana, queria voltar para casa. Mas por que fazer isso, Haddad? Não vês que é muito cansativo? Ele, com sua voz grossa, respondia, esclarecendo o motivo: “saudade das crianças.” Pois não é que alguém logo inventou: “eu sei, saudade das crianças, especialmente da cabeludinha do meio.” Ele ria de mansinho como todo mineiro. Outros, chegavam à sessão de julgamentos e perguntavam logo ao presidente da mesma: “pauta grande hoje, presidente?” Coisas de magistrados. Realmente, a vida de juiz é bastante pitoresca. Lembro que em Fortaleza um advogado entrou com uma ação pedindo relação de emprego referentemente a um indivíduo que trabalhava, desde alguns anos, como mecânico em um quartel do exército. Ajuizou a ação contra o coronel fulano de tal, comandante da unidade militar. Despachei mandando emendar a inicial para direcionar corretamente a ação. O gajo voltou com outra inicial agora contra o Quartel do 9º Regimento. Indeferi, com o mesmo despacho. O advogado procurou o Ivo, meu diretor de secretaria, e pediu: “pelo amor de Deus, pergunta para o juiz quem é que eu devo colocar como réu nessa ação”. O Ivo respondeu: “doutor, todo advogado tem que zelar pela UNIÃO de sua classe”. Uma semana depois, o bacharel entendeu o recado e matou a charada.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O meu barbeiro Melo

Morreu a mulher do Melo, o meu barbeiro. Sua melancolia me contagiou. É difícil encarar olhos injetados de dor. Melo, um bom sujeito, colorado como eu, sofredor. Em cada quarenta minutos do corte de cabelo tentamos salvar o mundo. Mas ninguém ouve nossa filosofia. Nos despedimos e adiamos o conserto da vida para o próximo mês. Mal sabe o Melo que, ontem, saí da barbearia com a tela do dia borrada pela tristeza. Perdas são difíceis. Quem não sabe disso?
De tanta amargura o Melo me cortou mal o cabelo e fiquei igual a um cantador de música sertaneja. Logo eu que odeio música sertaneja.
Tem dias em que a gente se incomoda e tudo perde a definição. Problemas profissionais, posse dos bens, festejos e passatempos. Nada interessa. E tudo que vem à frente, fazendo ferver a saudade, ganha um grande relevo. Nesse tipo de avenida é que passeia Gabriel García Márquez, quando escreve, por exemplo:
“Señor, señor, devuélmeme mi antigua inocência
para gozar su amor outra vez desde el principio.”

Nesses momentos o bom mesmo é andar pela rua vendo as vitrines. Tudo o de que não se necessita a não ser para cuidar da atenção e desviá-la dos amores acabados. No inferno deve ser assim: caminhar com o coração sempre partido, pedindo perfume às flores e obtendo como resposta o olhar calado.