quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Porta fechada

O corpo responde. Sem dúvida, o corpo responde. Na coluna, no estômago, nos intestinos, no nariz correndo. E por aí vão saindo os fantasmas, às gargalhadas, fazendo seus estragos. Sem perdão. Na massagem a Lorena me alertou: tens uma porta fechada nas costas. Nas costas? Era só o que me faltava. E não adianta tele-chaveiro. É coisa de psicóloga. Puxa vida, não pensei que eu era tão neurótico. Porta fechada. E nas costas. Como vou ter acesso a essa droga? Não chega o trânsito, os empurrões na fila do ônibus, as derrotas do colorado no domingo, e ainda tenho que resolver o problema de uma porta fechada nas costas. Ora valha-me Deus. De noite, não consigo dormir. Aquela porta é um verme repetitivo a martelar o cérebro. Saio, então, pelas ruas sombrias de Londres. Noite escura, calçada úmida, fog, silêncio e frio. Para encontrar a porta. Em Londres, ou qualquer lugar para viver o medo de abrir a minha porta. Apalpo cada centímetro para descobrir a forma de abri-la. Nada. Sem trinco, sem teclado, sem leitor ótico. Nada. Inegavelmente, neurótico. Porta fechada nas costas. Com ferrugem e pintura comprometida. Será que são os vinte anos de magistratura? Como fazer para penetrar nesse mundo desconhecido? Fico imaginando: e se encontro um alien, um exterminador do futuro, daqueles com dente pequeno e com baba correndo? O que mais me apavora é a baba. Teria que chamar um super-herói. Quem sabe o Batman? Ou o Joaquim Barbosa? Não, este tem a coluna pior do que a minha. Não deve ter uma porta, mas uma galeria nas costas. Com baba, e muito braba. Uma solução talvez: e, aí, leitor, poderia me dar uma sugestão de como abrir a tal porta? É isso mesmo, vou esperar a resposta. Sempre haverá um espírito caridoso. Mas, por favor, não vale palavrão.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Hebe charmosa

Sem dúvida, Egenildo era um fã incondicional da Hebe Camargo. Todas as semanas comparecia ao programa da loira charmosa na televisão. E mais: nunca repetia uma roupa. Na verdade, seu salário ia quase todo nas lojinhas onde adquiria o que considerava capaz de atrair os olhares da elegante apresentadora. O tempo foi passando e Hebe não pôde deixar de notar a presença daquele rapaz na fila do meio, sempre atento e entusiasmado. Seus aplausos revelavam extrema emoção. Um dia, porém, depois de alguns anos com a mesma rotina, Hebe observou que seu fã não viera ao programa. Ficou pensativa. O que, afinal, poderia ter acontecido? Terminada a jornada, Hebe chamou a assessoria e indagou se alguém sabia o que teria ocorrido com Egenildo. Esclarecido o problema que angustiava a apresentadora, os agentes entraram em campo e, em seguida, descobriram que a mãe de Egenildo tinha morrido e ele estava a velar a progenitora. Hebe não se conteve. Chamou o motorista e determinou que rumasse para o endereço que haviam fornecido. Daria um abraço no fã de anos, cuja fidelidade tanto a emocionara. Lá no velório todos, cabisbaixos, ouviam o choro insistente do filho, à beira do caixão. Egenildo era muito agarrado com sua mãe e sentira demais o golpe. De repente, Hebe entra no recinto. Aquele cabelo que despertava o mundo. Exuberante como sempre. Com seu vestido branco, que ainda não conseguira trocar. É como se um relâmpago divino tivesse iluminado a sala de tristes sombras. Egenildo, ainda com as mãos da mãe nas suas, exclamou com os olhos esbugalhados: “Hebe!!! Este é o dia mais feliz da minha vida.”

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Husband

As situações pitorescas, em verdade, dão graça à vida. Mas algumas... - puxa, são demais. Minha esposa resolveu aprender inglês. Dei a maior força. Só que, para gravar bem as palavras no idioma britânico, o que ela fez? Escreveu num papel e colou na frente dos objetos. Levantei, de manhã, e fui à cozinha. Na pia estava “sink”; no fogão, “cooker”; na geladeira, “fridge”. No banheiro “basin”, e assim por diante. A casa era um dicionário inglês. Muito interessante. Esforçada. Então, voltei para o quarto e me dirigi ao banheiro para lavar o rosto. Levantei os olhos para o espelho e vi colado na minha testa: “husband”. Era um incidente conjugal que tinha de analisar com a psicóloga. Marquei hora e cheguei cedo à consulta. Sentei na sala de espera. Olhei para a parede e o quadro do meio estava torto. Pensei: tenho que ajeitá-lo. Não suporto moldura torta. Resisti. Tinha que vencer esse impulso neurótico. Fiz a consulta. Convenceu-me a doutora que eu era mesmo um “husband”. Haveria de encarar a colagem como um gesto carinhoso. Não saí convencido de que o dinheiro da consulta tinha sido um gasto que valera a pena. Mas, tudo bem. Na semana seguinte voltei para nova consulta. Cedo. Sala de espera. O quadro ainda torto. Não é possível!!! Será que não existe um outro cliente neurótico? Só eu? Não. Vou resistir. Hei de vencer a ansiedade pela retidão do quadro, que não sei de onde vem. Começo a suar. Levanto. Sento. Levanto novamente. Não suporto e vou adiante. Tento endireitar a moldura. Impossível. Era o prego que não segurava direito. Suor intenso. Nesse instante, a doutora abriu a porta. Entre dentes, minha reação, ao encará-la,foi somente um “he,he,he”. O silêncio dos olhos da minha psicóloga dizia: “putz, esse tratamento vai ser longo”.