segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O lado real

O lado real. Na verdade, não sei bem qual é. É real o que se passa por dentro ou que se vê, sente, ou pensa que existe lá fora? Um quarto escuro. Breu completo. O mundo não pára. Gira numa velocidade intensa nas conjeturas instantâneas. Lembranças de família, brigas de colégio, filmes inesquecíveis, esportes, saudades dos amores, contas bancárias deficitárias, débitos a vencer, clientes a atender, trabalhos a concluir, promessas descumpridas, carinhos sonegados ou esquecidos. Não, nada pára. A única realidade que não resiste a dúvida é essa: meu interior. Ele existe, muitas vezes em curtos-circuitos neuróticos, estressado, e, sem mais nem menos, acorda em paz, com a alegria dos colegiais ao passar no vestibular. Pena que nele não haja espaço para construir jardins e regar flores, o que não impede de vê-las seguidamente e absorver seu perfume. Quando há umidade no interior das pessoas vazam lágrimas pelos olhos para equilibrar o ambiente.
O medo. O medo de ter medo e conservar essa mácula no espírito pelo resto da vida. É mais gratificante arriscar a vida, seguramente perdê-la do que andar pelo resto dos tempos com essa dor na memória. O medo de ter medo leva ao sacrifício, ao heroísmo. Quando perguntarem o que fizeste nos tempos da ditadura e não tiveres nada para responder o que acenderá no interior do teu sentimento de honra? O peso de meu corpo que carrego na missão de me tornar digno não tem significado. Desfigura-se no confronto com o altruísmo. Nesse contexto sua perda é a conquista da liberdade. O homem desonrado não passa de um animal qualquer, sobrevive como ele, vegetando, mas ainda menos nobre porque teve opção e omitiu-se. Como será estar à frente de um fuzil e resistir? Como será a sensação de receber uma bala na testa e tombar? Fim ou recomeço?
Tem dias em que há uma indolência no coração. Acho que é minha artéria direita entupida. As pessoas perguntam: o que há contigo, por que esse silêncio? Inventa-se uma desculpa: resfriado, noite mal dormida, etc. Mas a verdade é que o sangue deve caminhar triste pelas veias, já sem os cuidados de quem tem alguma surpresa para vivenciar. Indolente, descuidado com as margens, alheio ao sol ou à neve. Desabando pelas pedras como o sonâmbulo que desce a ladeira, desatento ao despertador que insiste em repetir o alerta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Às vezes, lá no sítio, acordo e olho pelas janelas da sala para aquela névoa que toma conta do vale. Torna sombrio o humor, escurece a lembrança. Há dias na vida em que tudo é assim. Cerração a tapar a visão para as teorias válidas, para as crenças no que há de simples, para a perspectiva de amor. Tardes inteiras sem um contato de aprovação. Telefone mudo. Caixa de entrada do e-mail vazia. Campainha inerte. Falta luz na esperança. Um vazio visto de dentro do vazio. Alguém que assiste o movimento de cima do obelisco, nada chegando a ele e ele não chegando a ninguém. Difícil é harmonizar essa sensação entre a palavra que digo e o sentimento que não consigo atingir. Descobertas sofridas.
Sabem, é custoso escrever para não ser lido. Inutilidade. Tempo perdido. Espantosa a necessidade que temos de aprovação. Tenho que demonstrar algum valor a outra pessoa, seja ela quem for. Escrever somente para o interior do meu corpo envelhecido não parece constituir uma postura lógica. O pior é que é, muito lógica. Dizer-me, informar-me, discutir com meus fantasmas. Seguramente, devo domesticá-los. Não é possível que fiquem a mirar brumas pelas janelas no sítio para atormentar-se e atormentar os outros. Recostar-se numa pedra no interior da caverna e falar com as paredes. Aprender com a resposta do eco. Pena é que o eco não venha dias depois, porque se concluiria que várias frases proferidas foram infelizes e, se pudéssemos, não teríamos pronunciado as mesmas.
Engraçado, não tenho medo de olhar para o horizonte sem achar uma razão para viver. Sempre é tempo de costurar roupas velhas. Dizer para as pessoas que a gente lhes quer bem, abraçá-las. Perguntar pelo amigo que sofreu uma cirurgia. Chorar pelo que se foi. Dizer que se sente muito, quando realmente sofrimento existiu e não se está a mistificar. O padre Carlini, que era uma jóia rara, dizia que amor é preocupação. Ele era um testemunho disso. Ouvidos feitos para ouvir com a condução da alma pura.
Sempre fui um sentimental e, em inúmeras ocasiões, invejei os insensíveis, aqueles que comem, dormem, transam e consomem. Parece que não podem ser consumidos. Imunes à tristeza. Carregam os filhos pela vida como se carregam malas. Assistem a um filme inteligente e saem do cinema sem entender nada. E o pior: sem ficar incomodados com isso. Seres simplesmente jogados no espaço em seus lugares indefinidos. Não choram, não contam piadas, riem pouco, comem muito, especialmente carne gorda. Jamais, porém, tem os olhos marejados pela brisa melancólica da tarde. Passar pela vida como um boi, um cavalo. Trabalhar, pastar, cagar. Não seria melhor do que essa resistente sensação de perspectiva indefinida? Ao cair a noite, ter de escrever versos...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Estética

Estética é algo para quem não tem fome nem frio, não foi abadonado pelo cônjuge ou não perdeu o ente querido. Estética é experimentar por dentro da sensação como quem quebra um paradigma. Não ter compromisso com qualquer propósito. Sair para a chuva sem guarda-chuva nem capa. Esquecer do almoço. Ignorar o saldo bancário. Seguir com um único combustível: o vácuo da dor, que não faz chorar nem rir. Simplesmente permanecer num ignoto ambiente de ar rarefeito só que com todo o ardor do coração. E produzir assim, afoitamente, como Álvaro de Campos que andou nesse território numa amplitude que ninguém jamais conheceu: “E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...” Bem, o certo é que em Alberto Caeiro a coisa vai melhor:

"Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos."

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O lixo das gavetas

Nada como o word. A desgraça dos leitores, a graça da cultura inútil.
No Judiciário é o tormento dos juízes. A gente pegava aquelas petições de cinquenta páginas, espremia e lia o fato e o pedido. Em dois minutos.
Andei limpando a minha mesa. Um monte de coisas fora. Mas encontrei um texto, provavelmente de um dia nublado e frio. Olha o que dizia:
"Hoje me sinto como aqueles sonâmbulos, que perderam o segredo do coração e não acham o rumo das coisas. Andar pelas sombras, tateando com os dedos da alma febril. Tudo por uma tarde cinzenta, fria, em que os gritos da calçada anunciam barbantes, CDs piratas, bolsas ou cigarros.
O tempo de terminar a vida vem com angústia, inutilidade. Não se é mais passageiro de nada. O mendigo da Estação Rodoviária que só admira chegadas e partidas. Deve ser assim no limbo. Sem pressa."
Há almas que devem ter um pacto com tardes de chuva. Úmidas toalhas esquecidas no varal. Alguma coisa que já foi, que já se exauriu. Saudade de um tempo de festas.
Caminhar por uma estrada de terra entre plátanos. Avenida de saudade. Depois, sentar num banco de madeira e ficar olhando o horizonte de dentro do pensamento. E pensar, pensar, pensar com alguma tristeza de solidão. Se alguém abrisse a minha cabeça veria ruas vazias, um vento despretensioso e um relógio, ao longe, batendo dezoito horas. Tempo de divagar é como despedir-se das situações comuns. Um trânsito congestionado de sensações e uma espera infinita.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Por falar em doçura...

É engraçado. Há sentimentos que não se podem definir bem. Certos livros que se leem e, ao chegar ao final, dá uma nostalgia. Uma coisa meio doída no lado esquerdo do peito como diria o Milton Nascimento. Mundo que se conheceu e se penetrou com a alma comprometida, tornando-se um dos personagens. E, aí, tudo acaba. E agora como é que eu fico? Perdi a minha casa que era lá dentro do livro, perdi os meus conhecidos, não sei o que mais pode ter acontecido com eles. Portas que se fecharam sem a permissão do meu sentimento.
Há pessoas abrutalhadas, que aparentemente não têm sentimentos. Algumas profissões até estimulam tais personalidades. Na verdade, não sei se são essas profissões que fazem tais espécimes ou se são elas que tendem a procurar determinadas ocupações. Não sabem o que é caridade, ternura, carinho, atenção. Jamais darão uma flor de presente à mulher amada. Em geral, não sabem dizer “obrigado” para nada. Mas, por outro lado, existem aqueles que sabem abraçar, que conhecem o momento de elogiar com sensibilidade, que tornam a vida dos outros mais agradável. O meu Pedro é assim. Quando abraça as pessoas o faz com espontaneidade e o seu beijo estalado contem divindade. O vô adora ele, enchendo-o de amor com um simples olhar. A vó Tere, então, entregou a alma ao piá que faz dela o que quer. Um anjo pode ser travesso porque de suas artes só saem bênçãos.
Eisntein teria dito que “o acaso é Deus que passeia incógnito”. Li no livro do Saulo Ramos. Hoje, a Iolanda me contou que sentou numa lanchonete para comer algo e uma senhora puxou conversa com ela. Foi um longo e gostoso papo. No fim, ela abraçou Iolanda e disse-lhe que estava feliz por ter tido a oportunidade de conhecer alguém tão terna e disponível. As duas saíram felizes. Cada uma para seu canto do mundo. Naquele momento, por certo, andava Ele por ali, incógnito.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Matou tem que comer

Perder-se nos bairros árabes. Sempre adorei sentir-me perdido, sem ter idéia para onde ir. Naquele momento tudo é interrogação, ansiedade, prazer de mistério. Já era assim quando ia pelos matos nos braços do rio Camaquã, pulando barrancos, me enredando nos espinhos, caindo nas pedras, com as botas no arroio e a água fresca no rosto. O berro do Jacu assustado. Coração explodindo. Passo a passo, barulho de folha seca pisada, respiração curta, a arma engatilhada. Enfim, a descoberta: lá está ele, imponente, na árvore alta. Lentamente a mira é feita e o tiro disparado. Cai a ave e, como sempre, num lugar quase inacessível. Como matar e não levar? Como matar e não comer? Isso era crime na consciência. Assim acontecia no meu tempo: matou tem que comer (lei das bichas). A verdade é que a Birucha se encarregava de elaborar os pratos. Uma vez, matei uma saracura e fiz assada no espeto: horrível, intragável. Nem os cachorros aceitaram. Mas caçador que se prezava tinha que se alimentar da caça ou era criminoso nas regras da Casa Branca. O regulamento, porém, não se aplicava às caturritas que exterminavam o milho e as peras. Essas se podia matar à vontade. Depois, eram entregues aos porcos, degenerados animais, que pegavam as aves feridas na asa, ainda vivas, e engoliam-nas devagar. O bicho gritando e entrando na goela do suíno como num túnel do tempo, o som diminuindo, diminuindo, diminuindo. O trágico fim de uma caturrita. Daria uma boa cena de filme...de terror. Buscar o jacu abatido no meio do banhado, à beira do mato. Por que o desgraçado tinha que cair ali? Voltas e voltas. As botas enterradas no barro. Opa, cuidado se não me enterro todo. A caça ali no chão. Tenho que pegá-la. Como, depois, vou me gabar ao Telminho? Indubitavelmente, tenho que pegá-la. Questão de honra. Uma estaca estendida, uma pedra atirada. E, por fim, preto de barro na roupa apanho o bicho. Como me lembrava disso nas discussões de plenário do meu tribunal, quando debatia com algumas aves togadas! Meus argumentos de bons teriam se tornado ótimos com uma doze empunhada. Eliminados alguns jacus a justiça teria sido bem melhor para o povo. Só que teria de comê-los...argh!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Coisas de Bagé

Juca foi um dos bons amigos que tive. Conversávamos bastante, quando me dava carona até em casa, vindo da FunBA. Lamentávamo-nos: temos que sair de Bagé. O potreiro é pequeno demais. Escrevia crônicas como ninguém num estilo divertido. É pena que o Juca não publique livros. Mas ainda há esperança. Um dia, ele escreveu um artigo no Correio do Sul de Bagé, dizendo que no “paredon” (contenção feita num arroio para evitar enchentes com o escoamento nas enxurradas) eram fuziladas pessoas na época da 2ª Guerra. Inimigos do nazismo eram fuzilados no local. Bem o estilo daquele espírito maroto que trabalhava com o insólito e o pitoresco. O Alan, que era agente da polícia federal e que lia muito, foi chamado pelo diretor da PF em Bagé: “Alan, investiga o Juca, vê o que descobre sobre as tais de execuções no paredon”. O Alan engoliu em seco: “Doutor, isso é ficção, literatura, não me exponha a esse ridículo”. O chefe insistiu. Poderia ser cobrado pelas autoridades de Brasilia. Tudo haveria de constituir um perigo à segurança nacional (era época da Redentora). Lá foi o Alan e imaginem com que constrangimento entrou no escritório do Juca... Outra vez, Juca escreveu um artigo dizendo que os vikings estiveram em Bagé na antiguidade. A prova estava no concreto que havia na passagem do arroio que vai do Prado em direção ao cemitério. Em resposta, um respeitado idoso fez publicar um desmentido, afirmando que aquilo era obra de um prefeito há algumas décadas.
O major Jardim era outra figura fantástica, que gerou filhos da mesma têmpera. Um deles é o Jerônimo, compositor dos mais renomados. O major Jardim adorava uma guriazinha de vila, sempre transitando com sua lurdinha (metralhadora) por baixo do casaco. Foi denunciado por sedução. E o Mathias Nagesltein, um dos melhores contadores de “causos”, aconselhou ao cliente: “Na sua idade, vamos alegar crime impossível, em razão de impotência”. O major se exaltou: “Nunca! Prefiro a pior marmorra”. Certo o major na esteira da filosofia do Roberto Freire: sem tesão não há solução.
Lembranças. Metade da vida a gente faz os fatos. Na outra metade, a gente lembra deles. Depois dos sessenta vai-se descendo uma ladeira. Já não precisa tanto esforço. É mais fácil perdoar, tolerar. Meu avô Ervandil dizia que jamais admitiria voltar aos seus sete anos. Tinha toda razão. Já imaginou voltar ao colégio das freiras, ver televisão com aquele riscos em que a imagem era algo concreto e o resto pura imaginação? Quando o homem desceu na lua, lá em Bagé na casa da vovó Nita vi uns fantasmas se mexendo na imagem. Se aquilo era povo na lua só por exclusiva fé na TV Difusora. Mas a verdade é que tudo parece umedecido pela sensibilidade do coração, que verte lágrimas ao recordar a infância, a infância dos filhos, as conquistas afetivas, as glórias profissionais, o triunfo intelectual. Tudo num longínquo tempo das calçadas da rua Bento Gonçalves, vendo a minha amada Mara vindo do colégio com as amigas. Por que não posso lembrar da Mara sem vontade de chorar? De onde vem tanta tristeza?
Este papel é o meu analista. Vou a fundo ao borrá-lo com a tinta da impressora. Registro a dor, a esperança, a gratidão, a mágoa, a saudade. Registro tudo. Sim, minha filha, minha poesia é triste. Cresci vendo a vida pelo ângulo inclinado, com uma nesga de sol pela porta que não se abria completamente. Sempre faltando alguma coisa. Como um avião na aterrissagem normal, nunca chego ao fim da pista. Permaneço a olhar para ver o que existe do lado de lá. Não vejo e não sinto nada. Algum detalhe inviável do meu eu que não se entrega, que não quer se enxergar. Faltam poucos metros para o fim da pista e tudo é um mistério nesse espaço curto da espera.