quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O guarda dorminhoco

Morei numa rua onde havia casas e edifícios e uma guarita com o guarda contratado para zelar pela zona toda. Certo dia ocorreu a vaga para essa função e alguém habilitou-se. Dadas as instruções o candidato ocupou a guarita. Um aposentado que tratava de complementar os proventos. Passada uma hora foi fazer xixi no banheiro que fora posto à disposição num dos prédios. Ao retornar à guarita o rádio do guarda tinha sido furtado. De imediato, dirigiu-se ao síndico pedindo as contas. Sofria do coração e negava-se a trabalhar num local tão perigoso. Agora, resido em outro edifício. Pegava sol a guarita do porteiro. Queixou-se do calor. O síndico, então, mandou colocar insulfilm nos vidros. De fora não se enxergava nada. Breu total. Foi o que bastou para que o vigia noturno se acomodasse em sua cadeira e varasse a sono solto a madrugada. Reunião do condomínio. Indignação total com o dorminhoco. Alguém advertiu que a escuridão na guarita passara a estimular o sono do tresnoitado vigia. Opiniões, discussões mais azedas. E o síndico objetou indignado: se algum ladrão aparecer não verá o guarda dormindo o que se torna essencial para nossa segurança. Nesse momento, um pouco confuso, comecei a desconfiar que estava sendo inútil a reunião.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O vaso quebrado

A minha amiga Lorena me disse que os orientais pegam os vasos quebrados, unindo cada pedaço até reconstituí-los. Mas utilizam o ouro para essa reconstituição. Assim, ao invés de perder o valor, a porcelana ganha maior preciosidade. E, portanto, aumenta seu poder de encanto. Os cacos passam a ter vida e a estética do conjunto renova a peça, fazendo readquirir o seu brilho. Isso parece ser muito criativo. Fico a pensar, entretanto, se esse trabalho demorar muito a ser feito, será que ainda estarão disponíveis todos os cacos? Assim, quando deixarmos cair no chão da discórdia, da impaciência, da intolerância, da falta de humildade o vaso da nossa contingência, o melhor a fazer é tratar de juntar os pedaços e providenciar imediatamente a reconstituição com o ouro do perdão. Caso contrário, os cacos resvalarão pelos meandros do ressentimento, rolando pelo sulco formado pela raiva e desaparecerão. E, aí, ao juntar a porcelana restará um buraco que, por menor que seja, deixará passar aquele vento de Chicago que congela tudo por dentro. Não se iluda. Cuide de seus vasos. E, se deixar cair algum deles, junte tudo às pressas, colando os cacos com o ouro do diálogo amoroso.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A terapia de Deus

Cristóvão Albuquerque e Silva. Cristóvão, que não era Colombo, embora como ele pudesse descobrir terras desconhecidas sem, contudo, lograr saber como desvendar o segredo das emoções. Por isso Cristóvão decidiu cursar psicologia. Sempre pensou que se a filosofia tentava resolver o ser e o nada a psicologia nem isso conseguia. Mas levou adiante seu intento. Formou-se e montou uma clínica bem sucedida. Passava as tardes em seu consultório, ouvindo as lamúrias dos pacientes, com muita paciência. Costumava dizer que paciente era o terapeuta. Já fazia uns trinta anos que desenvolvia esse trabalho numa rotina indigesta. Até que um dia teve uma surpresa. Alguém lhe mandara um e-mail para marcar consulta. Não era nem mais nem menos do que Deus. O quê, Deus? Não pode ser. Quem era o velho psicólogo para ser o escolhido? Terapia de Deus? No dia marcado lá estava Ele. Um homem comum. Sem barba, calçando tênis e vestindo jeans. Como vou fazer terapia no Senhor que é um ser perfeito? Como compreender a perfeição? Deus, simplesmente, objetou: e eu que sou um ser perfeito como entender todas as fragilidades da imperfeição? Estamos empatados. Desconcertado, Cristóvão pigarreou e resolveu começar a análise, ainda que por dentro estivesse estupefato: análise de Deus! Estou cansado, começou o paciente. Cansado de tantas pessoas se matarem invocando meu nome. Cansado de todas as reclamações, súplicas e penitências dirigidas a mim. Criei os homens à minha imagem e eles não querem assumir suas fraquezas. Por que tamanha destruição de meus rios, de meus pássaros, das minhas terras? Onde falhei? E ainda tenho que me atribuir a perfeição. Esse é o dilema patético da vida: a toda hora me chamam para resolver problemas que, na verdade, eu mesmo criei, porque fiz esse ser que dominou o mundo com sua tecnologia imperfeita e a desmedida pretensão de modificar o sistema. Esqueceu a regra básica que é amar o seu semelhante. Deus, depois de um fôlego, prosseguiu: acho que o mal teve início quando o primeiro homem começou a interpretar as coisas. No dia em que Adão virou-se para Eva e indagou sobre o que seria mesmo amar iniciou-se a interferência da dúvida e a necessidade de negar. Como vou compreender o erro se sou perfeito? Não vivi tal situação, não sofri, não chorei, nunca pedi nada porque não tenho a quem fazê-lo. Após breve silêncio, Cristóvão, meio constrangido, balbuciou: e não seria melhor fazer a humanidade esquecê-lo? O homem seria responsável por sua existência, dominaria o destino. Talvez pudesse entender que a felicidade passa por sua capacidade de decidir. Enquanto isso Você tiraria umas férias prolongadas num outro planeta para recuperar esses olhos tristes. Deus baixou a cabeça e sorriu suavemente. E, quando se preparava para prosseguir, tocou as seis horas no relógio do consultório e Cristóvão acordou em sua poltrona reclinada, depois de um dia atribulado. Bastante aliviado por não ter que concluir nada do terrível mistério que é ser o psicólogo de Deus.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Porta fechada

O corpo responde. Sem dúvida, o corpo responde. Na coluna, no estômago, nos intestinos, no nariz correndo. E por aí vão saindo os fantasmas, às gargalhadas, fazendo seus estragos. Sem perdão. Na massagem a Lorena me alertou: tens uma porta fechada nas costas. Nas costas? Era só o que me faltava. E não adianta tele-chaveiro. É coisa de psicóloga. Puxa vida, não pensei que eu era tão neurótico. Porta fechada. E nas costas. Como vou ter acesso a essa droga? Não chega o trânsito, os empurrões na fila do ônibus, as derrotas do colorado no domingo, e ainda tenho que resolver o problema de uma porta fechada nas costas. Ora valha-me Deus. De noite, não consigo dormir. Aquela porta é um verme repetitivo a martelar o cérebro. Saio, então, pelas ruas sombrias de Londres. Noite escura, calçada úmida, fog, silêncio e frio. Para encontrar a porta. Em Londres, ou qualquer lugar para viver o medo de abrir a minha porta. Apalpo cada centímetro para descobrir a forma de abri-la. Nada. Sem trinco, sem teclado, sem leitor ótico. Nada. Inegavelmente, neurótico. Porta fechada nas costas. Com ferrugem e pintura comprometida. Será que são os vinte anos de magistratura? Como fazer para penetrar nesse mundo desconhecido? Fico imaginando: e se encontro um alien, um exterminador do futuro, daqueles com dente pequeno e com baba correndo? O que mais me apavora é a baba. Teria que chamar um super-herói. Quem sabe o Batman? Ou o Joaquim Barbosa? Não, este tem a coluna pior do que a minha. Não deve ter uma porta, mas uma galeria nas costas. Com baba, e muito braba. Uma solução talvez: e, aí, leitor, poderia me dar uma sugestão de como abrir a tal porta? É isso mesmo, vou esperar a resposta. Sempre haverá um espírito caridoso. Mas, por favor, não vale palavrão.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Hebe charmosa

Sem dúvida, Egenildo era um fã incondicional da Hebe Camargo. Todas as semanas comparecia ao programa da loira charmosa na televisão. E mais: nunca repetia uma roupa. Na verdade, seu salário ia quase todo nas lojinhas onde adquiria o que considerava capaz de atrair os olhares da elegante apresentadora. O tempo foi passando e Hebe não pôde deixar de notar a presença daquele rapaz na fila do meio, sempre atento e entusiasmado. Seus aplausos revelavam extrema emoção. Um dia, porém, depois de alguns anos com a mesma rotina, Hebe observou que seu fã não viera ao programa. Ficou pensativa. O que, afinal, poderia ter acontecido? Terminada a jornada, Hebe chamou a assessoria e indagou se alguém sabia o que teria ocorrido com Egenildo. Esclarecido o problema que angustiava a apresentadora, os agentes entraram em campo e, em seguida, descobriram que a mãe de Egenildo tinha morrido e ele estava a velar a progenitora. Hebe não se conteve. Chamou o motorista e determinou que rumasse para o endereço que haviam fornecido. Daria um abraço no fã de anos, cuja fidelidade tanto a emocionara. Lá no velório todos, cabisbaixos, ouviam o choro insistente do filho, à beira do caixão. Egenildo era muito agarrado com sua mãe e sentira demais o golpe. De repente, Hebe entra no recinto. Aquele cabelo que despertava o mundo. Exuberante como sempre. Com seu vestido branco, que ainda não conseguira trocar. É como se um relâmpago divino tivesse iluminado a sala de tristes sombras. Egenildo, ainda com as mãos da mãe nas suas, exclamou com os olhos esbugalhados: “Hebe!!! Este é o dia mais feliz da minha vida.”

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Husband

As situações pitorescas, em verdade, dão graça à vida. Mas algumas... - puxa, são demais. Minha esposa resolveu aprender inglês. Dei a maior força. Só que, para gravar bem as palavras no idioma britânico, o que ela fez? Escreveu num papel e colou na frente dos objetos. Levantei, de manhã, e fui à cozinha. Na pia estava “sink”; no fogão, “cooker”; na geladeira, “fridge”. No banheiro “basin”, e assim por diante. A casa era um dicionário inglês. Muito interessante. Esforçada. Então, voltei para o quarto e me dirigi ao banheiro para lavar o rosto. Levantei os olhos para o espelho e vi colado na minha testa: “husband”. Era um incidente conjugal que tinha de analisar com a psicóloga. Marquei hora e cheguei cedo à consulta. Sentei na sala de espera. Olhei para a parede e o quadro do meio estava torto. Pensei: tenho que ajeitá-lo. Não suporto moldura torta. Resisti. Tinha que vencer esse impulso neurótico. Fiz a consulta. Convenceu-me a doutora que eu era mesmo um “husband”. Haveria de encarar a colagem como um gesto carinhoso. Não saí convencido de que o dinheiro da consulta tinha sido um gasto que valera a pena. Mas, tudo bem. Na semana seguinte voltei para nova consulta. Cedo. Sala de espera. O quadro ainda torto. Não é possível!!! Será que não existe um outro cliente neurótico? Só eu? Não. Vou resistir. Hei de vencer a ansiedade pela retidão do quadro, que não sei de onde vem. Começo a suar. Levanto. Sento. Levanto novamente. Não suporto e vou adiante. Tento endireitar a moldura. Impossível. Era o prego que não segurava direito. Suor intenso. Nesse instante, a doutora abriu a porta. Entre dentes, minha reação, ao encará-la,foi somente um “he,he,he”. O silêncio dos olhos da minha psicóloga dizia: “putz, esse tratamento vai ser longo”.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Bagé, a Revolução (2)

E nesse passo andavam as coisas, quando surgiu a notícia de que o general Joca Tavares, depois de fortalecer-se no Uruguai, marchava para a Rainha da Fronteira, a fim de arrebatá-la dos republicanos. Estavam certos os libertadores que a conquista de Bagé representaria um duro golpe no governo brasileiro, abalando a nova república. Dias de muita angústia à espera da invasão quando, de repente, ouviu-se ao longe o alarde de milhares de homens de aproximando. Com suas vestimentas e armas de guerra vinham resolutos para tomar Bagé. Avistado esse exército espalhou-se o terror na cidade, que era guarnecida por um número bastante inferior ao efetivo trazido pelo agressor, ou seja, quase um terço do total dos libertadores. Joca Tavares manda seu irmão Zeca Tavares tomar a estação ferroviária do Rio Negro, o que acontece em pouco tempo. Vencido Isidoro Fernandes que defendia o local. Controlados, assim, o acesso e o abastecimento da cidade. Os maragatos penetraram nas ruas de Bagé, levando o terror em suas investidas. Como era dificultoso manter prisioneiros, foi institucionalizada a degola como sistema. Disseminavam-se os corpos dos combatentes com o pescoço cortado de uma ponta à outra. Solução pragmática que encontrava eco na índole selvagem daqueles guerreiros. A população de Bagé ficou atordoada. Fugiu para todos os cantos possíveis, às vezes abandonando tudo o que possuía. Os maragatos iam tomando de roldão o território: Teatro 28 de Setembro, Beneficência Italiana, Mercado Público, quartéis, a Rua Barão do Rio Branco e a Enfermaria Militar. Em verdade, Joca Tavares foi empurrando os resistentes, que acabaram por ficar encurralados na Praça da Matriz. Ali foi feito o cerco da cidade, que ganhou fama na história pelos atos de bravura dos republicanos, especialmente do coronel Carlos Maria da Silva Telles que, mais adiante, combateu em Canudos, no nordeste brasileiro. A ordem de Floriano Peixoto para Carlos Telles é de que deveria resistir a qualquer custo. Mal sabia ele que, naquele momento, estava a desenvolver-se uma outra insurreição republicana, que visava a constituir a República de Bagé. Embora tenha sido curto o tempo em que durou o referido cerco (47 dias), o clima era desfavorável àquele infortúnio, pois se tratava dos meses de novembro de 1893 a janeiro de 1894, época do verão que, como já se mencionou, trazia um sol abrasante. Exatamente por isso sucediam-se as doenças, lotando as dependências da Igreja Matriz de São Sebastião (construída em 1820 e reformada em 1863). Tiroteios eram constantes, ficando as paredes do prédio cravejadas de balas. A fome atormentava a todos, que matavam cães e gatos para saciá-la. Até mesmo o cavalo do coronel Carlos Telles fora, a seu mando, sacrificado para amenizar a fome dos sitiados. A ordem era nunca ceder. Jamais se haveria de admitir a derrota dos pica-paus para os maragatos. E lá permaneciam, nessa situação precária, os republicanos bageenses, alheios às pretensões de pica-paus e maragatos. Em verdade, seu pensamento persistia, arraigadamente, na criação da República de Bagé. Vozes quase sufocadas naquele clima de desespero, Ervandil e Eurípedes tentavam manter o ânimo de seus aliados. Não raras vezes eram esses patriotas levados a conversar com Carlos Telles, que mantinha alguma distância, porque temia trair o governo central. Assim iam as coisas, quando aconteceu um fato decisivo. Em certa noite, os maragatos investiram contra as barricadas dos legalistas. Atiravam para todos os lados. Foi uma surpresa aos sitiados, que se defendiam desordenadamente. Carlos Telles, com sua bravura indômita, avançou contra os agressores. Um soldado de Joca Tavares apontou-lhe o rifle e atirou. A bala atingiria o coração do coronel. Mas, nesse exato momento, heroicamente, Pascoal Ângelo jogou-se à frente de Carlos Telles, entregando a vida dele para salvar a do chefe. A morte de Pascoal arrefeceu o ânimo pela nova república. Desestímulo completo de todos. Ervandil e Eurípedes desistiram da empreitada. Em 5 de janeiro de 1894, aproximavam-se as tropas mandadas como reforço por Julio de Castilhos. E, no dia seguinte, Joca Tavares recebe um telegrama de Gaspar Silveira Martins, concitando-o ao ataque final, porque Hipólito Ribeiro se aproximava para socorrer os pica-paus. Houve, então, uma última e frustrada tentativa de quebrar a resistência dos pica-paus, que resistiram ao ataque. Em sequência, os maragatos se apavoraram com a notícia da iminência da chegada dos reforços e bateram em retirada para Santana do Livramento. Levantado o cerco, aos poucos a cidade foi voltando ao normal. E, definitivamente, acabou por ser sepultada a República de Bagé. Dela restou apenas o testemunho da cruz, no Cerro de Bagé, onde está sepultado Pascoal Ângelo que, ao invés de primeiro-ministro, tornou-se o grande herói da república bageense. (obra de ficção)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Bagé, a República (1)

Pascoal Ângelo não podia mais suportar o calor que, no ano de 1893, chegava mais cedo a Bagé. Não havia quem não se queixasse do verdadeiro caldo que subia das ruas da cidade. Além disso, todos temiam os boatos de uma revolta federalista, projetada pelos descontentes com o governo de Julio de Castilhos, que governava o estado com mão de ferro. Resistência maior ainda era com Floriano Peixoto que sucedera Deodoro da Fonseca apontado como um feroz ditador. Todo esse clima de insatisfação somente fazia crescer a ansiedade dos planos traçados, em silêncio, por especial grupo de Bagé, que mantinha um grande projeto. Em verdade, o que se estava a propor era a criação de país independente, que se formaria por um amplo território, desde a atual Cachoeira do Sul até a cidade de Trinta e Três, que se localiza no Uruguai. O novo estado, sob a marca republicana, se estenderia ainda do porto de Rio Grande à cidade de Quaraí, tendo por capital, obviamente, a metrópole bageense. Isso tudo marcava a apreensão com a investida dos maragatos, de inegável formação monarquista, cujo grande ídolo era o bageense de personalidade marcante, senador Silveira Martins do Partido Federalista. Repetidas reuniões secretas se sucediam numa casa perto do cemitério, onde acabavam por serem traçados planos de conquista e de governo. Ervandil e Eurípedes, intelectuais com formação baseada na cultura francesa, eram os mais atuantes na empreitada. Afinal de contas, Bagé merecia aparecer no cenário internacional graças aos homens de escol que por lá viviam. Em verdade, várias tratativas desde algum tempo vinham sendo feitas com autoridades francesas e britânicas que, em princípio, não viam com maus olhos esse novo estado, que possuía familiaridade com a política europeia. Bagé poderia muito bem ser um ponto de neutralidade entre Uruguai e Argentina e o Brasil. Contavam os idealistas com a colaboração de vários expoentes da política e das forças militares. Inclusive já haviam atraído o filho de Bento Gonçalves, o chefe do Corpo de Transporte, Bento Gonçalves da Silva Filho que, depois, desertou abandonando a luta. O coronel Carlos Maria da Silva Telles não era antipático às pretensões do grupo, embora se mantivesse reticente. Pascoal Ângelo, mercê de seus dotes intelectuais e sensibilidade no trato da coisa pública, de família tradicional e caráter irrepreensível, figurava como o indicado para assumir o cargo de primeiro ministro no sistema parlamentarista que haveria de ser implantado. Poria em prática os ensinamentos e experiências da Universidade de Sorbonne.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ah, as bochechas.

“Ei, professor, sua filha acabou de nascer”. Terminei o discurso de paraninfo, levantei e me dirigi aos afilhados da Faculdade de Ciências Econômicas de Bagé: “perdão, tenho que sair. Minha filha acaba de nascer”. Palmas. Retirada apressada e ansiosa. Abre-se a cortina do berçário no Hospital Mário Araújo. Lá está ela: linda, bochechas rechonchudas. Nasceu com a ternura no rosto. Suzana e Marta adoravam o bebê cheio de doçura. E passavam o dia com ela. Cresceu. Sempre quietinha. Meu mimo. Às vinte horas ia dormir. Nos raros momentos em que tinha tempo, ela sentava nos meus joelhos e a paz que transmitia era como uma bênção divina. “Abre a boca, quero tirar uma foto dessa porteira” (caíra um dente da frente). Ela não entendia. Ficou nervosa e gritei para abrir a boca. Pronto. Foto tirada e o punhal cravado no meu peito. Sempre que olhava a foto o coração sangrava. Culpa eterna. Por que fui tão estúpido com aquela bonequinha assustada? Muitas coisas aconteceram. E ela acabou partindo para Londres. Nos fins de semana, sozinho no sítio, colocava, inadvertidamente, no meu som o CD do Bill Douglas, música de estilo inglês, daquelas que incendeiam a saudade. Ao começar o coral, interpretando “Deep Peace”, a nostalgia doía e chorava, chorava muito. Agora, quando tudo fica mais claro e definido, porque cabelos brancos dobram as folhinhas do tempo, olho para dentro de mim e lá está, inteira, a minha guriazinha de bochechas rechonchudas. Ainda fazendo a vida valer a pena.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

No calor não dá

Não. No calor não dá. A criatividade vai sufocando. A inspiração perde o rumo. O frio. Aí, sim, é possível criar alguma coisa. Já pensaram se Fernando Pessoa morasse numa terra em que se dança forró e a cerveja desce de manhã à noite? Ao invés de “Tabacaria” acabaria por sair outra coisa extremamente quente e chacoalhante. E se Kant pensasse seus imperativos numa praia nordestina, num fim de tarde de domingo? Som estridente, pouca roupa, bebida solta, caranguejos, pastelada. Buggys soltando bebês no asfalto fervente. E assim os imperativos se enredando nas cordas de um violão bêbado. Que imperativo que nada. Tudo liberado. Filhos aos milhares, deixando em pânico o responsável pela fila da reencarnação. Me deixem no frio. Com a minha lareira e toda a filosofia que se aconchega debaixo de uma coberta quentinha. Parece loucura, mas sempre que volto do nordeste acho que Tramandaí não é tão ruim. Ôxe!!!

terça-feira, 31 de julho de 2012

Almas delicadas

Há pessoas com almas delicadas. Gostam de orquídeas, de outras tantas plantas, de cães e de gatos. São capazes de chorar e sofrer o luto, quando um bichinho desses se vai. Almas delicadas são suaves como a música de Chopin, deixam-se inebriar pelos perfumes e também exalam perfumes, ao surgirem exuberantes no horizonte de um fim de dia. Gordos ou magros, feios ou bonitos, de qualquer cor ou opção sexual, de qualquer credo ou time de futebol, sempre pode haver aí uma alma delicada. Em verdade, Deus ao fazer o homem compensou os seus erros, enviando para a Terra essas almas, que levam paz, acalmam dores, adoçam amarguras. Não é comum, mas acontece. Você vai pegar o elevador e alguém lhe dá a frente. No trânsito difícil surge o motorista que com um sorriso lhe cede a vaga. O colega que desiste da vantagem em seu favor. O homem público que se nega a receber as regalias do cargo. Ah! Aí estão algumas almas delicadas. Sempre dispostas a ouvir, perdoar, renunciar, acariciar e dormir com os anjos, porque com a natureza dos anjos foram criadas. Se encontrar um ser assim iluminado, pare, afague seu rosto, beije seus pés, absorvendo a energia que dá sentido à vida. E siga com a esperança de que ainda vale a pena viver.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Análise

Puxa, nunca imaginei que o meu amigo Caruncho estivesse tão mal. Coitado, procurou um psicólogo que cobrou R$ 400,00 a consulta. Desistiu na hora. Mas a ansiedade não passava. Tinha que fazer algo. Como sempre se orgulhou de ser criativo, pensou, pensou e acabou por resolver o seguinte: comprou um espelho enorme e colocou na sala. Sentou numa poltrona em frente ao espelho, pondo-se a falar para si mesmo. Solução ideal porque a gente paga terapia apenas para ter alguém que nos ouça. Aquela imagem imóvel não incomodava, não cobrava, não exigia, não discordava. No terceiro dia da terapia, quando Caruncho estava no bom da lamúria, a imagem do espelho se levantou e foi embora. Saturada. Explodindo de tédio. Caruncho boquiaberto, estarrecido. Agora sem imagem. Bem, tinha que dar outra solução ao problema, porque a angústia não cessava. Foi até uma loja pet, que ficava a dois quarteirões de seu apartamento, e comprou um cachorro. Exigiu que fosse manso, pacato e disposto a obedecer. Mas especialmente que estivesse decidido a escutar o dono. Colocou o animal no pátio e sentou-se em frente dele, soltando o verbo de suas dúvidas existenciais. No segundo dia, o cão, após ouvir o rosário de lamentações, levantou, calmamente, e fez xixi na canela do Caruncho. Indignado. A coisa foi piorando. Os mendigos fugiam de Caruncho que corria atrás deles com uma nota de R$ 50,00 na mão. Pois é. O tempo passou e Caruncho, ao final das contas, encontrou a solução. Passou a gravar e filmar suas conversas. Dia após dia ia registrando tudo. Precisava mesmo era de um ser inanimado e a máquina se comportava bem. Meses se passaram. A terapia era um sucesso. A tranquilidade ia voltando aos poucos. Um dia, o zelador tocou na campainha do apartamento de Caruncho, porque há tempos não via o mesmo sair para o trabalho. Sem resposta. Batidas insistentes. Desconfiado, o zelador chamou os bombeiros que arrombaram a porta, deparando com uma cena grotesca: a imagem de Caruncho se lamentando no monitor da televisão e o vídeo rodando no aparelho. Caruncho caído de lado na poltrona com um copo de veneno na mão. Completamente morto. Não suportara assistir suas próprias queixas, tratando de procurar alguém que o ouvisse em outra encarnação. No centro espírita ao lado os médiuns começaram a abandonar o posto.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Meu amigo Joaquim

Meu amigo Joaquim. Ficou chocado com a notícia de que seu colega de quartel, Pacheco, fora atropelado por um carro. Na avenida Osvaldo Aranha. Todo quebrado.
Pegou o ônibus Petrópolis e dirigiu-se para a Beneficência Portuguesa. Tinha que visitar o companheiro de farda. Consolá-lo. Oferecer alguma ajuda, quem sabe.
Quarto 406, no quarto andar.
Chegou cedo ao hospital. Surpreendeu-se ao entrar no quarto de Pacheco. Sozinho, o infeliz estava enfaixado da barriga até a cabeça. Imóvel. Só mexia os olhos.
Joaquim sentou, cumprimentou o amigo e começou a relembrar o passado. Quantas aventuras na cavalaria. Cheiro horrível das baias. De manhã cedo, com um frio danado, tinham que dar alfafa para os cavalos. E, depois, comer aquela comida horrível no rancho dos oficiais. Feijão duro. Virava o prato e o desgraçado não caía.
Perguntou ao Pacheco se não recordava daquela vez em que ele foi fazer exterior com os soldados e um desses maturrangos quase se enterrou num banhado. Grande susto.
Outra vez em que foram fazer ordem unida e caiu uma chuvarada terrível. O Pacheco, dando as ordens, só teve tempo de dizer: “debandar!!!”. E os soldadinhos saíram em desabalada corrida para o esquadrão.
Grande Pacheco. Poderia contar com ele. Inclusive se estivesse apertado de dinheiro. Não era daqueles que abandonavam os colegas em dificuldades.
Na despedida, foi enfático: “vou voltar aqui pra te ver, pode ficar descansado”.
Entre aquela abundância de faixas pelo corpo inteiro só se viam dois olhos que fechavam e abriam, arregalavam-se e viravam-se como fuinha assustada. O Pacheco. Visitado e atordoado.
Uma semana depois, Joaquim caminhava na rua da Praia e encontrou seu colega Paludo. “Soubeste do Pacheco?”, disse-lhe, ao que o amigo respondeu: “Sim já visitei o coitado no hospital Ernesto Dornelles”. “Hein?”, foi só o que Joaquim foi capaz de dizer, despedindo-se sem jeito.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Rato de Biblioteca

Não tinha mais lugar no escritório. Levei, então, vários livros para o sítio, colocando-os numa prateleira no galpão.
Passados dois anos, fui procurar alguma coisa sobre prova no processo penal e constatei que alguns volumes já tinham sido comidos pelos ratos.
Tratei de vigiar a atividade dos invasores. À noite, sorrateiramente, abro a porta e encontro o rato Gontrão roendo a “História da Revolução Francesa” do Carlyle.
-Puxa, Gontrão, logo esse aí que custou tanto ao autor salvá-lo? Por que não pegaste um volume da revista do tribunal que não tenho mais onde colocar?
- Tentei, mas achei sem gosto.
Sem perder a calma, Gontrão relatou-me o lado pitoresco e também trágico da revolução gaulês.
- Como pode um fato histórico de tamanho significado para a oxigenação da cultura ocidental vir marcada pelos barbarismos cometidos? Havia uma raiva brutal nos homens. Em Arras, por exemplo, o representante Lebon, banhava sua espada no sangue que emanava da guilhotina, exclamando: “Como eu gosto disso!”
Impressionou-me a assimilação do Gontrão nas páginas engolidas do argentino Joaquin Gil Editores. Como é que pode?
Então, pensei: e seu eu tentasse engolir pelo menos uma parte de “O Capital” do Marx que jamais consegui entender. Será que poderia manter diálogo com o meu irmão que sabe tudo de filosofia?
Me enchi de coragem e comi páginas misturadas com batida de banana. Foi difícil engolir. Mas no dia seguinte é que a coisa piorou: prisão de ventre com cólicas atravessadas durante a noite. “A rotação total do capital empatado é a média das rotações de seus componentes”. E lá vinha uma dor aguda a massacrar a barriga. “A rotação do valor do capital empatado se distingue, pois, de seu período real de produção ou do período real de rotação de seus componentes”. Cólica que trespassa o abdômen e descamba no berro desesperado: “Iolanda, me ajuda, o Capital tá me matando.”
Um semana depois, ainda enfraquecido, volto ao galpão. O Gontrão desaparecera. Porém, encontrei a rata Pulquéria levando seus ratinhos para comer Piaget na esperança de assegurar o futuro de seus filhotes.
Realmente, não tenho estômago para rato de biblioteca.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Reverendo Guedes

Na rua Marechal Floriano, em Bagé, ficava a igreja evangélica. Do reverendo Guedes. Cada vez que passávamos pela frente, meus pais diziam: “essa é a igreja do diabo”. A prima Léia e sua mãe pertenciam à religião e eram vistas com maus olhos pela família. A Léia parecia ter uma aura escura e assim é que deveria senti-la, ainda que fosse uma boa pessoa.
De cima da garagem lá de casa era possível ver a tal igreja. Subia no telhado e espreitava o movimento na esperança de saber qual era o cotidiano do diabo. Porém, o único que via era o gordo reverendo Guedes na sua batina estranha: uma roupa preta (calça e casaco) com o colarinho branco redondo. Como seria possível? Batina que era batina só aquela parecida com saia.
Religião da família só a católica. Em 1956 cursava o quarto primário no Colégio Auxiliadora. Obrigatório assistir a missa no fim de semana. Era possível ir no sábado, carimbar a caderneta para provar a presença na segunda, e assim ficar livre no domingo para dormir até tarde.
Havia quatro compartimentos nos bancos da igreja Auxiliadora. Os alunos postavam-se no primeiro à direita de quem olha para o altar. Disputado era o banco mais ao meio, perto do confessionário. É que ali, às vezes, era confessor o padre Genius (parece ser esse o nome). Cabelo todo branco, um velho meio surdo e um tanto repressor. Passava carraspanas ferozes e aos gritos nos coitados. E assim, cabisbaixas, saíam as mulheres com seus véus brancos (solteiras e virgens) ou pretos (casadas com a consumação garantida).
Desenvolvia-se aquela monótona cerimônia. A hora do sermão constituía a verdadeira penitência. O sacerdote começava a falar e não parava. Mais tarde veio o padre Hugo que, de cima do púlpito, fazia seus sermões à moda Savonarola, o fanático monge florentino. Expulsava do templo as moças com decotes acentuados. Assistir essas tragédias era a única coisa divertida, embora o medo do padre Hugo. Ninguém dava um pio. Ouvia-se tudo. Sem entender nada. Mas sempre quieto.
A seguir vinham os cantos. Um começava assim: “Queremos Deus, homens ingratos...” Recheio de culpa nos espíritos jovens. Mas não adiantava muito, porque não se sabia o significado exato da palavra ingrato. E por isso colocava-se toda a ênfase no canto, como se fosse o hino do Guarany Futebol Clube em final de campeonato no Estrela D’Alva.
Lá no céu, o reverendo Guedes deve estar lendo estas linhas e rindo com seu rosto simpático.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Bicho de estimação

Ter um bicho de estimação. É realmente uma coisa boa embora o sacrifício que, às vezes, se tenha de fazer. A Iolanda tem a Pituxa, cachorrinha simpática, que se caracteriza pela discrição. Adora a sua dona. Quando a levo para passear, no final, ao chegarmos em casa, agradece a Iolanda por ter me mandado fazer o trabalho. Quando dou presunto para a esfomeada, diz obrigada a sua mãe por ter me ordenado isso. Quando compro remédios para a Pituxa, imediatamente se vira para Iolanda revelando sua gratidão. De manhã, abro a porta da lavanderia, onde dorme, e ela passa correndo entre minhas pernas para fazer festa para a dona. É assim mesmo. Todos os louros para a mãe. Sou só um acréscimo nessa relação. Mesmo assim, gosto da danadinha.
Esses bichinhos divertem a gente, porque costumam fazer o inusitado. Com a Pituxa tem duas coisas pitorescas.
Existe um açude no sítio onde estão muitas carpas. Ao levar a ração para os peixes a Pituxa enlouquece. Quer pegar as carpas. Grita feito uma desesperada e, certo dia, passou mais de dez horas em volta do tal açude, tentando agarrar um peixe. Nunca tinha visto isso. Cachorro pescador.
Mas o que mais me surpreendeu foi constatar que a Pituxa late para os corvos que passam voando sobre o sítio. Dias atrás estava com ela aos meus pés na piscina, quando saiu correndo e subiu uma estrada que vai morro acima. Olhei para ver o que estava acontecendo. Era um corvo que planava no céu e a cachorrinha subia o morro para pegá-lo.
Os cães são desse jeito. Só dão carinho. E, observando que seus donos estão impacientes, permanecem no seu canto em silêncio. Bons companheiros.
A linguicinha lá de casa não é diferente.