terça-feira, 6 de novembro de 2012

A terapia de Deus

Cristóvão Albuquerque e Silva. Cristóvão, que não era Colombo, embora como ele pudesse descobrir terras desconhecidas sem, contudo, lograr saber como desvendar o segredo das emoções. Por isso Cristóvão decidiu cursar psicologia. Sempre pensou que se a filosofia tentava resolver o ser e o nada a psicologia nem isso conseguia. Mas levou adiante seu intento. Formou-se e montou uma clínica bem sucedida. Passava as tardes em seu consultório, ouvindo as lamúrias dos pacientes, com muita paciência. Costumava dizer que paciente era o terapeuta. Já fazia uns trinta anos que desenvolvia esse trabalho numa rotina indigesta. Até que um dia teve uma surpresa. Alguém lhe mandara um e-mail para marcar consulta. Não era nem mais nem menos do que Deus. O quê, Deus? Não pode ser. Quem era o velho psicólogo para ser o escolhido? Terapia de Deus? No dia marcado lá estava Ele. Um homem comum. Sem barba, calçando tênis e vestindo jeans. Como vou fazer terapia no Senhor que é um ser perfeito? Como compreender a perfeição? Deus, simplesmente, objetou: e eu que sou um ser perfeito como entender todas as fragilidades da imperfeição? Estamos empatados. Desconcertado, Cristóvão pigarreou e resolveu começar a análise, ainda que por dentro estivesse estupefato: análise de Deus! Estou cansado, começou o paciente. Cansado de tantas pessoas se matarem invocando meu nome. Cansado de todas as reclamações, súplicas e penitências dirigidas a mim. Criei os homens à minha imagem e eles não querem assumir suas fraquezas. Por que tamanha destruição de meus rios, de meus pássaros, das minhas terras? Onde falhei? E ainda tenho que me atribuir a perfeição. Esse é o dilema patético da vida: a toda hora me chamam para resolver problemas que, na verdade, eu mesmo criei, porque fiz esse ser que dominou o mundo com sua tecnologia imperfeita e a desmedida pretensão de modificar o sistema. Esqueceu a regra básica que é amar o seu semelhante. Deus, depois de um fôlego, prosseguiu: acho que o mal teve início quando o primeiro homem começou a interpretar as coisas. No dia em que Adão virou-se para Eva e indagou sobre o que seria mesmo amar iniciou-se a interferência da dúvida e a necessidade de negar. Como vou compreender o erro se sou perfeito? Não vivi tal situação, não sofri, não chorei, nunca pedi nada porque não tenho a quem fazê-lo. Após breve silêncio, Cristóvão, meio constrangido, balbuciou: e não seria melhor fazer a humanidade esquecê-lo? O homem seria responsável por sua existência, dominaria o destino. Talvez pudesse entender que a felicidade passa por sua capacidade de decidir. Enquanto isso Você tiraria umas férias prolongadas num outro planeta para recuperar esses olhos tristes. Deus baixou a cabeça e sorriu suavemente. E, quando se preparava para prosseguir, tocou as seis horas no relógio do consultório e Cristóvão acordou em sua poltrona reclinada, depois de um dia atribulado. Bastante aliviado por não ter que concluir nada do terrível mistério que é ser o psicólogo de Deus.

Um comentário:

  1. Se até Deus está cansado da humanidade, o que dizer de nós, simples mortais?

    ResponderExcluir