terça-feira, 27 de outubro de 2009

Prova de sucessões

Pois não é que o Gifone ganhou a megasena acumulada? Descontado o imposto de renda, 154 milhões. Mas foi discreto. Não saiu por aí a alardear sua riqueza. Obviamente, a vida mudou. Vestuário, aparência, viagens, novas amizades, a maioria do seu bolso. Investiu tudo, com um excelente consultor financeiro, o Felipe. Tudo corria às mil maravilhas. Conheceu mulheres lindas, mas jamais quis casar. Um dia, recebeu um conselho da mãe: por que não congela o seu sêmen para no futuro ter um filho? Afinal quem herdará toda essa fortuna? Aceitou o conselho e deixou o material em depósito seguro. Só que, após alguns anos, conheceu Kátia com a qual veio a ter um filho, Cássio. Corria rotineira a vida quando Kátia sofreu um acidente e veio a morrer. Gifone entrou em depressão. Definhava a cada dia. De nada adiantava a fortuna. Foi aí que Dalva, sagazmente, conseguiu acesso ao sêmen depositado por Gifone, corrompendo o guardião. Com o auxílio de amigos, logrou inocular em si mesma o sêmen e conseguiu uma gestação segura. Nasceu uma menina linda, com os olhos do pai, que se chamou Gilda. Mas tal fato nunca chegou ao conhecimento de Gifone ou de qualquer pessoa da família. Passaram-se alguns anos e Gifone morreu por definição da tristeza coisa que o coração não controla. Velório, lágrimas, desconsolo. E, em seguida, o inventário. Cássio, único herdeiro, postulou a abertura da sucessão. Mas qual não foi sua surpresa ao receber uma notícia ruim do advogado: Gilda alegava ser sucessora do falecido, pedindo a investigação da paternidade com o exame de DNA. Feito o exame, deu positivo. Gilda era filha de Gifone. Depois de muita discussão, ficou provado que o de-cujus não havia conhecido em vida Dalva, a mãe de Gilda. Tudo não passara de um embuste. Todavia, inegável que Gilda portava o sangue de Gifone. O juiz tinha que julgar se Gilda dividiria ou não a herança com Cássio. Em dúvida o magistrado pediu seu conselho. O que você respondeu?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Às vezes, é difícil conviver

Às vezes, é difícil conviver. A gente levanta mal dormido, com dor de cabeça, enjoado do fígado, com as costas reclamando. Como é possível reagir com satisfação ao amanhecer? Qualquer deslise é motivo para encrenca. O nível de resistência à frustração é pequeno. Então, as respostas são ásperas, azedas. Vai-se para o trabalho e se recebe a notícia ruim de que o projeto fracassou, de que o dinheiro faltou, de que o carro bateu, de que o filho foi mal na escola. Com todos esses pregos grudados a ferir os pés como andar pela rota da harmonia? Silêncio: é a única válvula de escape. Roer a amargura. Calar: Deus deu apenas uma boca para falar e dois ouvidos para escutar. Ouvir tão-somente, a melhor estratégia, nem que a infame da parceira intensifique sua tagarelice ao ponto de surgirem desejos de eliminação sumária. Como seria bom se nessas horas a gente pudesse fechar os olhos e, comandando as células do corpo, desaparecer. Sumir. Ir lá para a terra de onde veio o Superman entre as pedras frias sem qualquer ruído, sem contas para pagar, canos rompidos no banheiro ou cartões de crédito estourados. Aí você volta, calmo, tranquilo, com vontade de acariciar de novo. A esposa fica linda. Daí, liga a TV e assiste o último minuto da decisão do campeonato em que seu time perde. Sai correndo e gritando: espera, espera! Mas o avião para a terra do Superman já saiu faz quinze minutos.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Dinheiro traz felicidade?

Parece um esnobismo afirmar que dinheiro não traz felicidade. Certamente, é uma experiência que o mundo inteiro quer ter. O pior é que é assim mesmo. O sorriso pelo presente ou pela aquisição se apaga minutos, horas, dias depois. Raramente isso se transforma em meses ou alguns anos. A primeira dor do sentimento faz esquecer tudo. A perda de um ente querido, o abandono da pessoa amada, a desaprovação dos colegas, a crítica dos amigos. Enfim, toda a alma contém um poder que o dinheiro não controla. Paga-se por atenção, compra-se elogio. Jamais, porém, a fortuna conquista amor. E não adianta uma mansão, com carros sofisticados e roupas de grife, porque nada se aproveita sozinho. Nunca tive prazer maior do que ver o meu fuscão, quando pude comprar o primeiro carro, pagando sacrificadas prestações. E como eram felizes aqueles piqueniques à beira do rio Camaquã com as crianças e os casais amigos...
Quando se vê uma pessoa desleixada, roupas sujas, desbotadas, rasgadas. Pessoas gordas, descabeladas. Quando se vê esses estranhos que perambulam pela vida como caminhassem num bairro pobre de Baltimore onde as janelas estão fechadas e somente papéis são levados pelo vento no asfalto vazio. Quando se nota tudo isso nos cantos dos dias sem sol, percebe-se como a alma domina o corpo. Não há por que cuidar de si próprio ao ter pesadelos com tormentas, espaço abandonado no coração que já está quase murchando. Tristezas, muitas tristezas. Fico abalado ao ver pessoas assim. É como andar no ambiente da morte, na linha do limbo onde as paisagens deprimem. Lágrimas, lamentos, saudades dos dias em que existiram prazeres, sorrisos. Dias de festas que revolvem a lembrança como um filme cortado, imagens meio apagadas. No inferno não deve haver fogo queimando a pele. Acho que lá o diabo faz a gente lembrar do que foi lindo e não voltará mais. Lá, o demo obriga o condenado a olhar-se no espelho e ver a barriga protuberante, os seios caídos, o cabelo nas orelhas. Uma coceira intensa nas costas onde a gente não consegue alcançar. E segue coçando pela eternidade. O diabo acorda o pecador às seis horas para fazer ginástica. RRRRRRRRRRRRRRRR!!!!!!!!!!!!!!!!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Ainda nas prateleiras

Sigo nas prateleiras e encontro a “Antologia Poética de Neruda”. Lá pelas tantas descubro:

“Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos,
Con fúria, con olvido, paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia,
Y pátios donde hay ropas colgadas de un alambre:
Calzoncillos, toallas y camisas que lloran
Lentas lágrimas súcias.”


É impressionante como algumas pessoas podem usar as palavras por uma forma tão criativa. Do mesmo modo, a música. Acordes sublimes. O futebol: jogadas de mestre, que nunca alguém havia imaginado. Tintas e traços inimagináveis nas telas de Renoir ou Velásquez. Usam-se o idioma, os sons, as pernas, as linhas e tudo vira fantástico aos olhos do profano. É nesse momento que devo relembrar o que está em Irvin D. Yalom no livro “A Cura de Schopenhauer”:

“Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem.”

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Carências

Carências. A maior e mais importante delas é a carência de afeição. A vida sentimental é como uma caixa com compartimentos que se vai enchendo da substância de amor, desde a sala de parto. Quando algum compartimento experimenta a falta de carinho, permanece vazio. Aí, em outra fase da vida, reclama atenção. Em geral, na maturidade. Incríveis os jogos de que a pessoa é capaz para tentar preencher aquele vazio. Os extremos do alarido ou do silêncio, em regra revelam as carências. Procure, analise os motivos do comportamento desse sujeito e descobrirá que, em alguma fase de seu crescimento, apresenta um vazio de aprovação. Depois de morrer, gostaria que dissessem: “o Fábio? Aquele Fábio de Bagé? Um grande juiz, um grande professor, um grande advogado?” Isso é, sem dúvida, uma carência que carrego, porque de nada isso valerá quando me for. Pura bobagem. Não terei mais ouvidos. Digam o que disserem e isso não mais me dirá respeito. Minha memória é o que estiver no coração dos outros, se é que em algum deles penetrei. Nada mais. Afinal, quem não tem suas carências?

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O Guilherme, amigo bloguiano, é o "Gui-Gui". De fato, o "Gui-Gui", não é, Átila?
Grande figura. Ou melhor, bem pequena, em seu triciclo no Edifício City em Bagé. Atrás do prédio ficavam as garagens dos apartamentos com portões de cortina de metal. O picurrucho passeava em sua bicicletinha com o boné de aba erguida. Para lá e para cá. O dia todo.
Certa manhã, um sujeito moreno estava a consertar um dos portões de garagem. Erguia e baixava a cortina várias vezes. Barulho infernal. O Guilherme com os bracinhos no guidon olhando impassível. O moreno suado e nervoso. Lá pelas tantas, sai daquele rostinho a voz esganiçada: "Eu acho que tu não tá arrumando, eu acho que tu tá é estragando isso."
Sorte do "Gui-Gui" que, ao virar-se, a munição para fuzilamento estava apenas no olhar do obreito atormentado.