terça-feira, 24 de agosto de 2010

Saramago em Brasília

Sabem, de vez em quando aumenta a desilusão com as coisas que acontecem em Brasília, capital que representa o maior erro cometido nesta república. Por lá todos se acham os donos da verdade. São reis, duques, barões, etc. Bastam-se. Vivem uns em função dos outros. Poder dentro do poder e em função de si mesmo. São os que se consideram assinalados pela mão divina para cuidar do conforto e do bem-estar do povo brasileiro. Pura bobagem.
Um dos poderes da capital insana é o judiciário, que vive a autoproclamar-se como a perfeição no acesso ao serviço público. E o pior: as pessoas são enganadas, e bem enganadas. Com raras exceções, já viram algum dos ministros dos tribunais superiores em seus gabinetes de sexta a segunda-feira? E quem faz os acórdãos, e quem revisa as decisões? Na ampla maioria dos casos esses magistrados não sabem o que estão julgando, não têm sequer idéia do que consta nos processos que decidem. Julgam cem, duzentos, trezentos casos numa sessão apenas. Ditam apenas o resultado, nada mais. E fazem de tudo para evitar que algum advogado faça uma sustentação oral.
Então, ao ler o “Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago, lembrei de tudo isso ao deparar com as primeiras letras:

Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.”